sábado, 14 de maio de 2022

Contos do sábado na Usina: Machado de Assis: A Mulher de Preto IV:


Um dia Estêvão Soares foi convidado para um baile em casa de um velho amigo de seu pai. 
A sociedade era luzida e numerosa; Estêvão, embora vivesse muito arredado, achou ali grande número de conhecidos e conhecidas. Não dançou; viu, conversou, riu um pouco e saiu. 
Mas ao entrar levava o coração livre; ao sair trouxe nele uma flecha, para falar a linguagem dos poetas da Arcádia; era a flecha do amor. 
Do amor? A falar a verdade não se pode dar este nome ao sentimento experimentado por Estêvão; não era ainda o amor, mas bem pode ser que viesse a sê-lo. Por enquanto era um sentimento de fascinação doce e branda; uma mulher que lá estava produzira nele a impressão que as fadas produziam nos príncipes errantes ou nas princesas perseguidas, segundo nos rezam os contos das velhas. 
A mulher em questão não era uma virgem; era uma viúva de trinta e quatro anos, bela como o dia, graciosa e terna. Estêvão via-a pela primeira vez; pelo menos não se lembrava daquelas feições. 
Conversou com ela durante meia hora, e tão encantado ficou com as maneiras, a voz, a beleza de Madalena, que ao chegar a casa não pôde dormir. 
Como verdadeiro médico que era, sentia em si os sintomas dessa hipertrofia do coração que se chama amor e procurou combater a enfermidade nascente. Leu algumas páginas de matemática, 
isto é, percorreu-as com os olhos; porque apenas começava a ler o espírito alheava do livro onde apenas ficavam os olhos: o espírito ia ter com a viúva. 
O cansaço foi mais feliz que Euclides: sobre a madrugada Estêvão Soares adormeceu. Mas sonhou com a viúva. 
Sonhou que a apertava em seus braços, que a cobria de beijos, que era seu esposo perante a Igreja e perante a sociedade. 
Quando acordou e lembrou-se do sonho, Estêvão sorriu. 
- Casar-me! disse ele. Era o que me faltava. Como poderia eu ser feliz com o espírito receoso e ambicioso que a natureza me deu? Acabemos com isto; nunca mais verei aquela mulher... e boa noite. 
Começou a vestir-se. 
Trouxeram-lhe o almoço; Estêvão comeu rapidamente, porque era tarde, e saiu para ir ver alguns doentes. 
Mas ao passar pela rua do Conde lembrou-se que Madalena lhe dissera morar ali; mas aonde? A viúva disse-lhe o número; o médico porém estava tão embebido em ouvi-la falar que não o decorou. 
Queria e não queria; protestava esquecê-la, e contudo daria o que se lhe pedisse para saber o número da casa naquele momento. 
Como ninguém podia dizer-lhe, o rapaz tomou o partido de ir-se embora. 
No dia seguinte, porém, teve o cuidado de passar duas vezes pela rua do Conde a ver se descobria a encantadora viúva. Não descobriu nada; mas quando ia tomar um tílburi e voltar para casa encontrou o amigo de seu pai em cuja casa encontrara Madalena. 
Estêvão já tinha pensado nele; mas imediatamente tirou dali o pensamento, porque ir perguntar-lhe onde morava a viúva era uma coisa que podia traí-lo. 
Estêvão já empregava o verbo trair. 
O homem em questão, depois de cumprimentar ao médico, e trocar com ele algumas palavras, disse-lhe que ia à casa de Magdalena, e despediu-se. 
Estêvão estremeceu de satisfação. 
Acompanhou de longe o amigo e viu-o entrar em uma casa. 
- É ali, pensou ele. 
E afastou-se rapidamente. 
Quando entrou em casa achou uma carta para ele; a letra, que lhe era desconhecida, estava traçada com elegância e cuidado: a carta recendia a sândalo. 
O médico rompeu o lacre. A carta dizia assim: 
"Amanhã toma-se chá em minha casa. Se quiser vir passar algumas horas conosco dar-nos-á sumo prazer. - Magdalena C..." 
Estêvão leu e releu o bilhete; teve idéia de levá-lo aos lábios, mas envergonhado diante de si próprio por uma idéia que lhe parecia de fraqueza, cheirou simplesmente o bilhete e meteu-o no bolso. 
Estêvão era um pouco fatalista. 
- Se eu não fosse àquele baile não conhecia esta mulher, não andava agora com estes cuidados, e tinha conjurado uma desgraça ou uma felicidade, porque ambas as coisas podem nascer deste encontro fortuito. Que será? Eis-me na dúvida de Hamleto. Devo ir à casa dela? A cortesia pede que vá. Devo ir; mas irei encouraçado contra tudo. É preciso romper com estas idéias, e continuar a vida tranqüila que tenho tido. 
Estava nisto quando Meneses lhe entrou por casa. Vinha buscá-lo para jantar. Estêvão saiu com o deputado. Em caminho fez-lhe perguntas curiosas. 
Por exemplo: 
- Acredita no destino, meu amigo? Pensa que há um deus do bem e um deus do mal, em conflito travado sobre a vida do homem? 
- O destino é a vontade, respondia Menezes; cada homem faz o seu destino. 
- Mas enfim nós temos pressentimentos... Às vezes adivinhamos acontecimentos em que não tomamos parte; não lhe parece que é um deus benfazejo que no-los segreda? 
- Fala como um pagão; eu não creio em nada disso. Creio que tenho o estômago vazio, e o que melhor podemos fazer é jantar aqui mesmo no hotel de Europa em vez de ir à rua do Lavradio. Subiram ao hotel de Europa. 
Ali havia vários deputados que conversavam de política, e os quais se reuniram a Menezes. Estêvão ouvia e respondia, sem esquecer nunca a viúva, a carta e o sândalo. 
Assim, pois, davam-se contrastes singulares entre a conversa geral e o pensamento de Estêvão. Dizia por exemplo um deputado: 
- O governo é reator; as províncias não podem mais suportá-lo. Os princípios estão todos preteridos; na minha província foram demitidos alguns subdelegados pela circunstância única de serem meus parentes; meu cunhado, que era diretor das rendas, foi posto fora do lugar, e este deu- se a um peralta contraparente dos Valadares. Eu confesso que vou romper amanhã a oposição. 
Estêvão olhava para o deputado; mas no interior estava dizendo isto: 
- Com efeito, Magdalena é bela, é admiravelmente bela. Tem uns olhos de matar. Os cabelos são lindíssimos: tudo nela é fascinador. Se pudesse ser minha mulher, eu seria feliz; mas quem sabe?... Contudo sinto que vou amá-la. Já é irresistível; é preciso amá-la; e ela? que quer dizer aquele convite? Amar-me-á? 
Estêvão embebera-se tanto nesta contemplação ideal, que, acontecendo perguntar-lhe um deputado se não achava a situação negra e carrancuda, Estêvão entregue ao seu pensamento respondeu: 
- É lindíssima! 
- Ah! disse o deputado, vejo que o senhor é ministerialista. Estêvão sorriu; mas Menezes franziu o sobrolho. 
Compreendera tudo.

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