Familiar aos
cacos de vidro inofensivos, o gato caminhava molengamente por cima do muro. O
menino ia erguer-se, apanhar um graveto, respirar o hálito fresco do porão. Sua
úmida penumbra. Mas a presença do gato.
o
gato, que parou indeciso, o rabo na
pachorra de uma quase interrogação.
Luminoso sol a pino e o imenso céu azul, calado, sobre o quintal.
o
menino pactuando com a mudez de tudo em
torno - árvores, bichos, coisas. Captando o inarticulado segredo
das coisas. Inventando um ser sozinho, na tontura de imaginações
espontâneas como um gás que se desprende.
Gato - leu no
silêncio da própria boca. Na palavra não cabe o gato, toda a verdade
de um gato. Aquele ali, ocioso, lento, emoliente
- em cima do muro. As coisas aceitam a incompreensão de um nome que não está cheio delas. Mas bicho,
carece nomear direito: como rinoceronte, ou girafa se tivesse mais uma sílaba
para caber o pescoço comprido. Girafa, girafa.
Gatimonha, gatimanho. Falta um nome
completo, felinoso e peludo, ronronante de astúcias adormecidas. O
pisa-macio, as duas bandas de um gato.
Pezinhos de um lado,
pezinhos de outro,
leve, bem de leve para não machucar
o silêncio de feltro nas mãos enluvadas.
O pêlo do gato
para alisar. Limpinho, o quente contato da mão no dorso, corcoveante e nodoso à
carícia. O lânguido sono de morfinômano.
O marzinho de
leite no pires e a língua secreta, ágil. A
ninhada de gatos, os vacilantes filhotes
de olhos cerrados. O novelo, a bola de papel - o menino e o gato brincando. Gato lúdico. O
gatorro, mais felino do que o
cachorro é canino. Gato persa, gatochim
- o espirro do gato
de olhos orientais. Gato de botas, as
aristocráticas pantufas do gato. A manha do
gato, gatimanha: teve uma gata miolenta em segredo chamada Alemanha.
Em cima do muro,
o gato recebeu o aviso da presença do menino.
Ondulou de
mansinho alguns passos denunciados apenas na
branda alavanca das ancas. Passos irreais, em cima do muro eriçado de cacos de
vidro. E o menino songamonga, quietinho, conspirando no quintal, acomodado com o silêncio de todas as coisas. No se olharem, o menino suspendeu a respiração,
ameaçando de asfixia tudo que em torno dele com ele respirava, num só sistema
pulmonar. O translúcido manto de calma sobre
o claustro dos quintais. O coração do menino batendo baixinho. O gato olhando o menino vegetalmente nascendo
do chão, como árvore desarmada e inofensiva. A insciência, a inocência dos vegetais.
O ar de enfado,
de sabe-tudo do gato: a linha da boca imperceptível,
os bigodes pontudos, tensos por hábito. As orelhas acústicas. O rabo
desmanchado, mas alerta como um leme. O pequeno focinho úmido embutido na cara
séria e grave. A tona dos olhos reverberando
como
laguinhos ao
sol. Nenhum movimento na estátua viva de um gato. Garras e presas remotas, antigas.
Menino e gato
ronronando em harmonia com a pudica intimidade
do quintal. Muro,
menino, cacos de vidro, gato,
árvores, sol e céu azul:
o milagre da comunicação
perfeita. A comunhão dentro de um mesmo barco.
O que existe aqui, agora,
lado a lado, navegando. A confidência essencial prestes a exalar, e sempre adiada.
E nunca. O gato, o menino, as coisas: a vida túmida e solidária. O teimoso segredo sem
fala possível. Do muro ao menino, da
pedra ao gato: como a árvore e a sombra da árvore.
O gato olhou
amarelo o menino. O susto de dois seres que
se agridem só por se
defenderem. Por existirem e, não sendo um, se
esquivarem. Quatro olhos luminosos -
e todas as coisas opacas por testemunha. O estúpido muro coroado de cacos de
vidro. O menino sentado, tramando uma posição mais prática. O gato de pé,
vigilantemente quadrúpede e, no equilíbrio atento, a centelha felina. Seu íntimo
compromisso de astúcia.
O menino
desmanchou o desejo de qualquer gesto. Gaturufo, inventou o menino,
numa traiçoeira tentativa de aliança e amizade. O gato, organizado para a fuga, indagava.
Repelia. Interrogava o momento da ruptura - como um toque que desperta da
hipnose. Deu três passos de veludo e
parou, retesando as patas traseiras, as patas dianteiras na iminência
de um bote - para onde? Um
salto acrobático sobre um rato atávico, inexistente.
Por um momento,
foi como se o céu desabasse de seu azul: duas rolinhas desceram vertiginosas
até o chão. Beliscaram levianas um grãozinho de nada e de novo cortaram o ar excitadas, para longe.
O menino
forcejando por nomear o gato, por decifrá-lo. O gato mais igual a todos os
gatos do que a si mesmo. Impossível qualquer
intercâmbio: gato e menino não cabem num só quintal. Um muro permanente
entre o menino e o gato.
Entre todos os seres emparedados, o muro. A divisa, o limite. O odioso mundo de
fora do menino, indecifrável. Tudo que não é o menino, tudo que é inimigo.
Nenhum rumor de
asas, todas fechadas. Nenhum rumor.
Ah, o estilingue
distante - suspira o menino no seu mais oculto silêncio. E o gato consulta com a língua
as presas esquecidas, mas afiadas. Todos os músculos a postos, eletrizados. As garras despertas unhando o muro entre dois abismos.
O gato, o alvo:
a pedrada passou assobiando pela crista do
muro. O gato correu elástico e cauteloso, estacou um segundo e despencou-se do
outro lado, sobre o quintal vizinho. Inatingível às pedras e ao perigoso desafio
de dois seres a se
medirem, sumiu por baixo da parreira espapaçada ao sol.
O tiro ao alvo
sem alvo. A pedrada sem o gato. Como um soco no ar:
a violência que
não conclui, que se perde no vácuo. De cima do muro, o menino devassa o quintal
vizinho. A obsedante presença de um gato ausente.
Na imensa prisão do céu azul, flutuam distantes as manchas pretas dos urubus. O
bailado das asas soltas ao sabor dos ventos
das alturas.
O menino pisou
com o calcanhar a procissão de formigas atarantadas.
Só então
percebeu que lhe escorria do joelho esfolado um filete de sangue. Saiu manquitolando pelo portão,
ganhou o patiozinho do fundo da casa.
A sola
dos pés nas
pedras lisas e quentes. À passagem do menino, uma
galinha sacudiu no ar parado a sua algazarra histérica.
A casa sem
aparente presença humana.
Agarrou-se à
janela, escalou o primeiro muro, o segundo, e alcançou o telhado. Andava
descalço sobre o limo escorregadio das telhas escuras, retendo o enfadonho peso
do corpo como quem segura a respiração. O refúgio
debaixo da caixa-d'água, a fresca acolhida da sombra. Na caixa, a água
gorgolejante numa golfada
de ar. Afastou o tijolo
da coluna e enfiou
a mão: bolas de gude, o canivete roubado,
dois caramujos com as lesmas salgadas
na véspera. O mistério. Pessoal, vedado aos outros. Uma pratinha azinhavrada, o ainda perfume da caixa de sabonete. A estampa de
São José, lembrança da Primeira Comunhão.
Apoiado nos
cotovelos, o menino apanhou uma joaninha que
se encolheu,
hermética. A joaninha indevassável, na palma
da mão. E o súbito silêncio da caixa-d'água, farta, sua sede saciada.
Do outro lado da
cidade, partiram solenes quatro badaladas no relógio da Matriz. O menino olhou
a esfera indiferente do céu azul, sem
nuvens. O mundo é redondo, Deus é redondo, todo segredo é redondo.
As casas
escarrapachadas, dando-se as costas, os quintais se repetindo na modorra da
mesma tarde sem data.
Até que
localizou embaixo, enrodilhado à sombra, junto
do tanque:
um gato.
Dormindo, a cara escondida entre as patas, a cauda invisível. Amarelo, manchado
de branco de um lado da cabeça: era um
gato. Na sua mira. Em cima do muro ou dormindo, rajado ou amarelo, todos os
gatos, hoje ou amanhã, são o mesmo gato. O gato-eterno.
O menino apanhou
o tijolo com que vedava a entrada do mistério. Lá embaixo - alvo fácil - o gato
dormia inocente a sua sesta ociosa. Acertar pendularmente na cabeça mal
adivinhada na pequena trouxa felina,
arfante. Gato, gato, gato: lento bicho sonolento, a decifrar ou a acordar?
A matar. O
tijolo partiu certeiro e desmanchou com estrondo a
tranqüila rodilha
do gato. As silenciosas patinhas enluvadas se descompassaram no susto, na surpresa do
ataque gratuito, no estertor da morte. A morte inesperada. A elegância
desfeita, o gato convulso contorcendo as patas, demolida a sua arquitetura. Os sete fôlegos
vencidos pela brutal
desarmonia da morte. A cabeça de súbito esmigalhada, suja de sangue
e tijolo. As presas
inúteis, à mostra na boca entreaberta. O gato fora
do gato, somente
o corpo do gato. A
imobilidade sem a viva presença imóvel do sono.
O gato sem o que nele é gato. A morte, que é ausência
de gato no gato. Gato
- coisa entre as coisas. Gato a esquecer, talvez
a enterrar. A apodrecer.
O silêncio da
tarde invariável. O intransponível muro entre
o menino
e tudo que não é o menino. A cidade, as casas, os quintais, a densa copa da
mangueira de folhas avermelhadas. O inatingível céu azul.
Em cima do muro,
indiferente aos cacos de vidro, um gato - outro
gato, o sempre
gato - transportava para a casa vizinha o tédio de um mundo impenetrável. O vento quente que desgrenhou o mormaço
trouxe de longe,
de outros
quintais, o vitorioso canto de um galo.
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