Eu queria seguir
em frente mas não podia. Ficava parado no
meio daquele monte de crioulos - uns balançando o pé, ou a cabeça, outros mexendo
os braços; mas
alguns, como eu, duros como um pau, fingindo que não estavam ali, disfarçando
que olhavam um disco na vitrina, envergonhados. É engraçado, um sujeito como eu
sentir vergonha de ficar ouvindo música na porta da loja de discos. Se tocam
alto é pras pessoas ouvirem; e se não
gostassem da gente ficar ali ouvindo era só desligar e pronto: todo mundo
desguiava logo. Além disso, só tocam música legal, daquelas que você tem que
ficar ouvindo e que faz mulher boa andar diferente, como cavalo do exército na
frente da banda.
A questão é que
passei a ir lá todos os dias. As vezes eu
estava na janela da academia do
João, no intervalo de um exercício, e lá de cima via o montinho na porta da
loja e não agüentava - me vestia correndo,
enquanto o João perguntava, "aonde é que você vai, rapaz? você ainda não terminou o
agachamento", e ia direto para lá. O João ficava maluco com esse troço,
pois tinha cismado que ia me preparar para o concurso do melhor físico do ano e
queria que eu malhasse quatro horas por dia e eu parava no meio e ia para
a calçada ouvir
música. "Você está
maluco", dizia, "assim não é possível, eu acabo me enchendo com você,
está pensando que eu sou palhaço?"
Ele tinha razão,
fui pensando nesse dia, reparte comigo a
comida que recebe de casa, me dá vitaminas que a mulher que é enfermeira
arranja, aumentou meu ordenado de auxiliar de instrutor de alunos só para que eu não vendesse
mais sangue e pudesse me dedicar aos exercícios, puxa!, quanta
coisa, e eu não reconhecia e ainda mentia
para ele; podia
dizer para ele não
me dar mais dinheiro, dizer a verdade, que a Leninha dava para mim tudo que eu
queria, que eu podia até comer em restaurante, se quisesse, era só dizer para
ela: quero mais.
De longe vi logo
que tinha mais gente que de costume na porta da loja. Gente diferente da que ia
lá; algumas mulheres. Tocava um
samba de balanço infernal - rum
schtictum tum: os dois alto-falantes grandes na porta estavam de lascar,
enchiam a praça de música. Então eu vi, no asfalto, sem dar a menor bola para os carros que passavam perto, esse
crioulodançando.
Pensei: outro maluco, pois a cidade está cada vez mais cheia de maluco, de maluco e de
viado. Mas ninguém ria. O crioulo estava de
sapato marrom todo cambaio, uma calça mal-ajambrada, rota no rabo, camisa branca de manga comprida
suja e suava pra burro.
Mas ninguém ria. Ele fazia piruetas,
misturava passo de balé com samba de gafieira, mas ninguém ria. Ninguém ria
porque o cara dançava o fino e parecia que dançava num palco, ou num filme, um
ritmo danado, eu nunca tinha visto um negócio daqueles. Nem eu nem ninguém,
pois os outros também olhavam para ele embasbacados. Pensei: isso é coisa
de maluco mas maluco não dança desse
jeito, para dançar desse jeito o sujeito tem que ter
boas pernas e bom molejo, mas é preciso também ter boa cabeça. Ele dançou três
músicas do long-play que estava tocando e quando parou todo mundo começou a
falar um com o outro, coisa que nunca
acontece na porta
da loja, pois
as pessoas ficam
lá ouvindo música caladas. Então o crioulo apanhou
uma cuia que estava no chão perto da
árvore e a turma foi colocando notas
na cuia que ficou logo cheia.
Ah, estava explicado, pensei,
o Rio estava ficando diferente. Antigamente você via um ou outro ceguinho tocando um troço qualquer, às vezes acordeão, outras violão, tinha até
um que tocava pandeiro acompanhado de rádio de pilha - mas dançarino era a
primeira vez que eu via. Já vi também uma orquestra de três paus-de-arara castigando cocos e baiões
e o garoto tocando o "Tico-tico
no fubá" nas garrafas cheias d'água. Já vi. Mas dançarino! Botei duzentas
pratas na cuia. Ele colocou
a cuia cheia
de dinheiro perto
da árvore, no chão,
tranqüilo e seguro de que ninguém ia mexer na gaita,
e voltou a dançar.
Era alto: no
meio da dança, sem parar de dançar, arregaçou as mangas
da camisa, um
gesto até bonito, parecia bossa ensaiada, mas acho que ele estava era com
calor, e apareceram dois braços muito musculosos
que a camisa larga escondia. Esse cara é definição pura, pensei. E isso não foi
palpite, pois basta
olhar para qualquer sujeito vestido que
chega na academia pela primeira vez para dizer que tipo de peitoral tem ou qual o abdômen, se a musculatura dá para inchar ou para
definir. Nunca erro.
Começou a tocar
uma música chata, dessas de cantor de voz fina e o crioulo parou de dançar,
voltou para a calçada, tirou um
lenço imundo do bolso e limpou o suor do rosto. O grosso debandou, só ficaram
mesmo os que sempre ficam para ouvir música, com ou sem show. Cheguei perto do crioulo
e disse que ele tinha
dançado o fino.
Riu. Conversa vai conversa vem ele
explicou que nunca tinha feito aquilo antes. "Quer dizer, fiz uma outra
vez. Um dia passei aqui e me deu uma coisa, quando vi estava dançando no
asfalto. Dancei uma música só, mas um cara embolou uma notinha e jogou
no meu pé. Era
um Cabral. Hoje vim de cuja. Sabe como é,
estou duro que nem, que nem -" "Poste", disse eu. Ele olhou para
mim, da maneira que tinha de olhar sem
a gente saber
o que ele estava pensando. Será que pensava que eu estava gozando ele? Tem
poste branco também, ou não tem?, pensei.
Deixei passar.
Perguntei, "você faz
ginástica?". "Que
ginástica, meu chapa?" "Você tem o físico de
quem faz ginástica." Deu uma risada mostrando uns dentes branquíssimos e
fortes e sua cara que era bonita ficou
feroz como a de um gorila grande.
Sujeito estranho. "Você faz?", perguntou ele. "O quê?" "Ginástica", e me
olhou de alto a baixo, sem me dar nenhuma palavra, mas eu também
não estava interessado no que ele estava pensando; o que os outros
pensam da gente não interessa, só interessa o que a gente pensa
da gente; por exemplo, se eu pensar
que eu sou
um merda, eu sou mesmo,
mas se alguém
pensar isso de mim o que que tem?, eu não preciso de ninguém, deixa o
cara pensar, na hora de pegar para capar é que eu quero ver. "Faço peso", disse.
"Peso?" "Halterofilismo." "Ah, ah!", riu de novo,
um gorila perfeito. Me lembrei do
Humberto de quem diziam que tinha a força de
dois gorilas e quase a mesma inteligência. Qual seria a força do crioulo?
"Como é o seu nome?", perguntei, dizendo antes o meu. "Vaterlu, se escreve com dábliu e dois ós."
"Olha, Waterloo, você quer ir até a academia onde eu faço ginástica?"
Ele olhou um pouco para o chão, depois pegou a cuia e disse
vamos". Não
perguntou nada, fomos andando, enquanto ele punha o dinheiro no bolso, todo
embolado, sem olhar para as notas.
Quando chegamos
na academia, João estava debaixo da barra com o Corcundinha. "João, esse éo Waterloo", eu disse. João me olhou atravessado, dizendo "quero falar
contigo", e foi andando para o vestiário. Fui atrás. "Assim não é
possível, assim não é possível", disse o João. Pela cara dele vi
que estava
piçudo comigo. "Você parece que não entende", continuou João,
"tudo que eu estou fazendo
é para o teu bem, se fizer o que eu digo papa esse
campeonato com uma perna nas costas e depois está feito. Como é que você pensa que eu cheguei ao ponto em que eu
cheguei? Foi sendo o melhor físico do ano. Mas tive que fazer força,
não foi parando a série no meio não, foi
malhando de manhã e de tarde, dando duro, mas hoje tenho academia, tenho
automóvel, tenho duzentos alunos, tenho o meu nome feito, estou comprando
apartamento. E agora eu quero te ajudar e você não ajuda. É de amargar.
O que eu ganho
com isso? Um aluno da minha academia
ganhar o campeonato? Tenho o Humberto, não tenho? O Gomalina, não tenho? O Fausto,
o Donzela - mas
escolho você entre todos esses e essa é
a paga que você me dá." "Você tem razão", disse
enquanto tirava a roupa e colocava
minha sunga. Ele continuou: "Se você tivesse
a força de vontade do Corcundinha! Cinqüenta e três anos de idade! Quando
chegou aqui, há seis meses, você sabe disso, estava com uma doença horrível
que comia os músculos das costas dele e deixava a espinha sem apoio, o corpo
cada vez caindo mais para os lados, chegava a dar medo. Disse para
mim que estava ficando cada vez menor e mais torto, que os médicos não sabiam
porra nenhuma, nem injeções nem massagens estavam dando jeito nele: teve nego aqui que ficou de boca aberta olhando para o seu peito pontudo
feito chapéu de almirante, a corcunda saliente, todo torcido para a frente,
para o lado, fazendo caretas,
dava até vontade de vomitar
só de olhar. Falei pro Corcundinha, te ponho bom, mas tem que fazer tudo que eu
mandar, tudo, tudo, não vou fazer um
Steve Reeves de você, mas daqui a seis meses será outro homem. Olha ele agora.
Fiz um milagre?
Ele fez o milagre, castigando, sofrendo, penando, suando: não há limite para a
força humana!".
Deixei o João
gritar essa história toda pra ver se sua chateação comigo passava. Disse, pra
deixar ele de bom humor, "teu peitoral está bárbaro". João abriu
os dois braços
e fez os peitorais saltarem, duas massas enormes, cada peito devia pesar dez
quilos: mas ele não era o mesmo das fotografias
espalhadas pela parede. Ainda de braços abertos, João caminhou para o espelho grande da parede e ficou olhando
lateralmente seu corpo. "É esse supino
que eu quero
que você faça;
em três fases:
sentado, deitado de cabeça
para baixo na prancha e deitado no banco; no banco eu faço de três maneiras, vem ver." Deitou-se no
banco com a cara sob o peso apoiado no cavalete. "Assim, fechado, as mãos
quase juntas; depois, uma abertura média; e, finalmente, as mãos bem abertas nos extremos da barra. Viu como é? Já botei na
tua ficha nova. Você vai ver o teu peitoral
dentro de um mês", e dizendo
isso me deu um soco forte no peito.
"Quem é esse crioulo?", perguntou João olhando
Waterloo, que sentado
num banco batucava
calmamente. "Esse é o Waterloo",
respondi, trouxe para fazer uns exercícios, mas ele não pode pagar." "E você acha que
eu vou dar aula de graça para qualquer vagabundo que aparece por aqui?" "Ele tem base, João, a
modelagem deve ser uma sopa." João
fez uma careta de desprezo: "O que, o quê?, esse cara!, ah! manda embora,
manda embora, você tá maluco". "Mas você ainda não viu, João. A roupa dele não ajuda." "Você
viu?" "Vi", menti, "vou arranjar uma sunga para ele."
Dei a sunga para
o crioulo, dizendo: "Veste isso, lá dentro".
Eu ainda não
tinha visto o crioulo sem roupa, mas fazia fé:
a postura dele só seria possível com uma musculatura firme. Mas fiquei preocupado; e se ele só
tivesse esqueleto? O esqueleto é importante, é a base de tudo, mas tirar um
esqueleto do zero é duro como o diabo, exige
tempo, comida, proteína e o João não ia querer trabalhar em cima de osso.
Waterloo de
sunga saiu do vestiário. Veio andando normalmente: ainda
não conhecia os
truques dos veteranos, não sabia que mesmo
numa aparente posição de repouso
é possível retesar
toda a musculatura, mas isso é um troço difícil de fazer, como
por exemplo definir
a asa e os tríceps
ao mesmo tempo, e ainda sim ultaneamente os costureiros e os reto-abdominais, e os bíceps
e o trapézio, e tudo harmoniosamente sem parecer que o cara está tendo
um ataque epiléptico. Ele não sabia fazer isso, nem podia, é coisa de mestre,
mas
no entanto, vou dizer,
aquele crioulo tinha o desenvolvimento muscular cru mais perfeito que já vi na minha
vida. Atéo Corcundinha parou seu exercício e veio ver. Sob a pele fina de
um negro profundo e brilhante, diferente do
preto fosco de certos crioulos, seus músculos se distribuíam e se ligavam, dos pés à cabeça,
num crochê perfeito.
"Te
dependura aqui na barra", disse o João. "Aqui?", perguntou Waterloo, já
debaixo da barra. "É. Quando a tua testa
chegar na altura da barra, pára." Waterloo começou a suspender o
corpo, mas no meio do caminho riu e pulou para o chão. "Não quero
palhaçada aqui não, isso é coisa séria", disse João, "vamos
novamente." Waterloo subiu e parou como o João tinha mandado. João ficou
olhando. "Agora, lentamente, leva o queixo acima da barra. Lentamente.
Agora desce, lentamente. Agora volta à posição inicial e pára." João
examinou o corpo de Waterloo. "Agora, sem mexer o tronco, levanta
as duas pernas,
retas e juntas." E o crioulo
começou a levantar as pernas, devagar,
e com facilidade, e a musculatura do seu corpo parecia uma orquestra afinada, os
músculos funcionando em conjunto, uma coisa bonita e poderosa. João devia estar
impressionado, pois começou também a contrair os próprios músculos e então notei que eu e o próprio Corcundinha
fazíamos o mesmo, como a cantar em coro uma música irresistível; e João disse,
com voz amiga que não usava para
aluno nenhum, "pode descer", e o crioulo
desceu e João continuou, "você já fez ginástica?" e Waterloo respondeu
negativamente e João arrematou "é não fez
mesmo não, eu sei que não fez; olha, vou contar para vocês, isso acontece uma vez
em cem milhões; que cem milhões, um bilhão! Que idade você tem?". "Vinte anos", disse Waterloo.
"Posso fazer você famoso, você quer
ficar famoso?", perguntou João.
"Pra quê?", perguntou Waterloo, realmente interessado em saber para quê. "Pra quê? Pra quê? Você é gozado, que pergunta
mais besta", disse João.
Para que, eu fiquei pensando, é mesmo, para
quê? Para os outros
verem a gente na rua e dizerem
lá vai o famoso fulaneco? "Para que, João?", perguntei. João me olhou
como se eu tivesse xingado a mãe dele. "Ué, você também, que coisa! O que
vocês têm na cabeça, hein? Ahn?" O João de vez em quando perdia a
paciência. Acho que estava com uma vontade
doida de ver um aluno ganhar o campeonato. "O senhor não explicou pra
que", disse Waterloo respeitosamente. "Então explico. Em primeiro
lugar, para não andar esfarrapado como um mendigo, e tomar banho quando quiser, e comer
- peru, morango,
você já comeu morango? -, e ter um lugar confortável para morar, e ter mulher,
não uma nega fedorenta, uma loura,
muitas mulheres andando atrás de você, brigando para ter você, entendeu? Vocês nem sabem o que é
isso, vocês são uns bundas-sujas mesmo." Waterloo olhou para João, mais surpreso
que qualquer outra coisa, mas eu fiquei com raiva; me deu vontade de sair na mão com
ele ali mesmo, não por causa do que
havia dito de mim, eu quero que ele se foda, mas por estar sacaneando o crioulo;
cheguei até a imaginar como seria a briga: ele é mais forte, mas eu
sou mais ágil, eu ia ter que brigar em pé, na base da cutelada. Olhei para o seu pescoço
grosso: tinha que ser ali no gogó, um pau seguro
no gogó, mas para dar um cacete caprichado ali por dentro ia ter que me colocar
meio lateral e a minha base não ficava tão firme se ele viesse com um passa-pé; e
por dentro o
bloqueio ia ser fácil, o João tinha reflexo, me lembrei dele treinando o Mauro
para aquele vale-tudo com o Juarez em
que o Mauro foi estraçalhado; reflexo ele
tinha, estava gordo
mas era um tigre;
bater dos lados não adiantava, ali eram duas
chapas de aço; eu podia ir para o
chão tentar uma finalização limpa,
uma chave de braço; duvidoso. "Vamos botar a roupa, vamos embora", disse para Waterloo. "O que
que há?", perguntou João
apreensivo, você está zangado comigo?" Bufei e disse: "Sei lá, estou com
o saco cheio disso tudo, quase me embucetei contigo ainda agora, é bom você ficar sabendo". João ficou tão nervoso que quase perdeu a pose, sua barriga chegou a estufar como se fosse uma
fronha de travesseiro, mas não era medo
da briga não, disso ele não tinha medo, ele estava era com medo de perder o
campeonato. "Você ia fazer isso com o teu amigo", cantou ele,
"você é como um irmão para mim, e ia brigar comigo?" Então fingiu uma
cara muito compungida, o artista, e sentou abatido num banco com o ar miserável de um sujeito que acaba
de ter notícia que a mulher o anda corneando. "Acaba com isso,
João, não adianta
nada. Se você
fosse homem, você
pedia desculpa." Ele engoliu
em seco e disse "tá bem, desculpa, porra!,
desculpa, você também (para o crioulo), desculpa; está
bem assim?". Tinha dado o máximo, se eu provocasse ele explodia, esquecia
o campeonato, apelava para a ignorância,
mas eu não ia fazer
isso, não só porque a minha raiva já tinha passado
depois que briguei com ele em pensamento, mas também porque João havia pedido desculpa e quando
homem pede desculpa a gente desculpa. Apertei a mão dele, solenemente; ele
apertou a mão de Waterloo. Também apertei
a mão do crioulo.
Ficamos sérios como três doutores.
"Vou fazer
uma série para você, tá?", disse João, e Waterloo respondeu "sim senhor". Eu peguei a minha ficha e disse para João: "Vou fazer a rosca direta com sessenta quilos
e a inversa com quarenta, o que você
acha?". João sorriu
satisfeito, "ótimo, ótimo Terminei minha
série e fiquei olhando João ensinar ao Waterloo. No princípio a coisa é muito
chata, mas o crioulo fazia os
movimentos com prazer, e isso é raro:
normalmente a gente
demora a gostar
do exercício. Não havia mistério para Waterloo, ele
fazia tudo exatamente como João queria. Não
sabia respirar direito,
é verdade, o miolo da caixa ainda ia ter que abrir,
mas, bolas, o homem estava começando!
Enquanto
Waterloo tomava banho, João disse para mim: "Estou com vontade de
preparar ele também para o campeonato, o que você acha?". Eu disse que
achava uma boa idéia. João continuou: "Com
vocês dois em forma, é difícil a academia não ganhar. O crioulo só precisa
inchar um pouco, definição ele já tem". Eu disse: "Também não é assim não, João; o Waterloo é bom, mas
vai precisar malhar
muito, ele só deve ter uns
quarenta de braço". "Tem quarenta e dois
ou quarenta e três", disse João. "Não
sei, é melhor medir." João disse que ia medir o braço, antebraço, peito, coxa, barriga
da perna, pescoço. "E você quanto tem de braço?", me perguntou
astuto; ele sabia, mas eu disse, "quarenta e seis". "Hum... é pouco, hein?,
pro campeonato é pouco...
faltam seis meses... e você, e você..." "Que que tem eu?" "Você está afrouxando..." A conversa estava chata e resolvi prometer, para encerrar:
"Pode deixar, João,
você vai ver, nesses seis meses eu vou pra cabeça". João me
deu um abraço, "você é um cara inteligente... Puxa! com a pinta que você tem, sendo campeão!, já imaginou?
Retrato no jornal... Você vai acabar no cinema, na América, na Itália, fazendo
aqueles filmes coloridos, já
imaginou?". João colocou
várias anilhas de dez quilos
no pulley. "Teu pulley é de quanto?",
perguntou. "Oitenta." "E essa garota que você tem, como é que
vai ser?" Falei seco: "Como é que vai ser o quê?". Ele:
"Sou teu amigo, lembre-se disso". Eu: "Está certo, você é meu amigo, e daí?". "Tudo que eu falo é para o teu bem."
"Tudo que você fala é para o meu bem, e daí?" "Sou como um irmão para você." "Você é como um
irmão para mim, e daí?" João
agarrou a barra do pulley,
ajoelhou-se e puxou
a barra até o peito enquanto os oitenta quilos de anilhas subiam
lentamente, oito vezes. Depois:
"Qual é o teu
peso?". "Noventa." "Então faz o pulley com noventa. Mas
olha, voltando ao assunto, sei que peso dá um tesão grande, tesão, fome, vontade de dormir - mas isso não quer
dizer que a gente faça isso sem
medida; a gente fica estourado, na ponta dos cascos, mas tem que se controlar, precisa disciplina; vê o Nelson, a comida acabou
com ele, fazia uma série de cavalo
pra compensar, criou massa, isso criou, mas comia como um porco e acabou com um corpo de porco...
coitado..." E João fez uma cara de pena. Não gosto
de comer, e João sabe disso. Notei que o Corcundinha, deitado de costas,
fazendo um crucifixo quebrado, prestava atenção na nossa conversa. "Acho
que você anda fuçando demais", disse João, "isso não é bom. Você chega aqui toda manhã
marcado de chupão, arranhado no pescoço, no peito, nas costas, nas pernas. Isso
nem fica bem, temos uma porção de
garotos aqui na academia, é um mau
exemplo. Por isso eu vou te dar um conselho"- e João olhou para mim com
cara de amigos-amigos-negócios-à-parte, com cara de contar dinheiro; já se respaldava no crioulo? - "essa garota não serve,
arranja uma que queira
uma vez só por semana,
ou duas, e assim mesmo maneirando." Nesse instante Waterloo surgiu do vestiário e João disse para
ele, "vamos sair que eu vou
comprar umas roupas para você; mas é empréstimo, você vai trabalhar aqui na
academia e depois me paga". Para mim: "Você precisa de um ajudante.
Güenta a mão aí, que eu já volto".Sentei-me,
pensando. Daqui a pouco começam a chegar os
alunos.
Leninha,
Leninha. Antes que fizesse uma luz, o Corcundinha falou: "Quer ver se eu
estou puxando certo na barra?". Fui ver. Não gosto de olhar o Corcundinha.
Ele tem mais de seis tiques diferentes. "Você está melhorando dos tiques", eu disse; mas que besteira, ele
não estava, por que eu disse aquilo? "Estou, não estou?", disse
ele satisfeito, piscando
várias vezes com incrível
rapidez o olho esquerdo. "Qual a puxada que você está fazendo?" "Por
trás, pela frente, e de mãos juntas na ponta da barra. Três séries para cada exercício, com dez repetições.
Noventa puxadas, no total, e não sinto
nada." "Devagar e
sempre", eu disse para ele. "Ouvi a tua conversa com o João",
disse o Corcundinha. Balancei a cabeça. "Esse negócio de mulher é fogo", continuou ele, "eu briguei com a
Elza." Raios, quem era a Elza? Por
via das dúvidas, disse
"é". Corcundinha: "Não era mulher para mim. Mas ocorre que estou agora com essa outra
pequena e a Elza vive ligando lá para casa dizendo desaforos para ela, fazendo
escândalos. Outro dia na saída do cinema foi de
morte. Isso me prejudica, eu sou um homem de responsabilidade". Corcundinha num ágil salto agarrou a
barra com as duas mãos e balançou o corpo para a frente e para trás,
sorrindo, e dizendo:
"Essa garota
que tenho agora é um estouro, um brotinho, trinta
anos mais nova do que eu, trinta anos, mas eu ainda estou em forma - ela não
precisa de outro homem". Com
puxadas rápidas Corcundinha içou o corpo
várias vezes. Por
trás, pela frente, rapidamente: uma dança;
horrível; mas não despreguei olho. "Trinta anos mais nova?", eu disse
maravilhado. Corcundinha gritou do
alto da barra: "Trinta anos! Trinta anos!". E dizendo isso
Corcundinha deu uma oitava na barra, uma subida de rim e após balançar-se
pendularmente tentou girar como se fosse uma hélice, seu corpo completamente vermelho
do esforço, com exceção da cabeça, que ficou mais branca. Segurei
suas pernas; ele caiu
pesadamente, em pé, no chão.
"Estou em forma", ofegou. Eu disse:
"Corcundinha, você precisa
tomar cuidado, você... você não é criança". Ele: "Eu me cuido, me cuido,
não me troco por nenhum garoto, estou melhor
do que quando tinha vinte anos e bastava uma mulher roçar em mim para eu ficar
maluco; é toda noite, meu camaradinha, toda noite!". Os músculos do seu
rosto, pálpebra, narina,
lábio, testa começaram a contrair, vibrar,
tremer, pulsar, estremecer, convulsar; os seis tiques ao mesmo tempo. "De vez em quando os
tiques voltam?", perguntei. Corcundinha respondeu: "É só quando fico distraído". Fui para a janela pensando
que a gente vive distraído. Embaixo, na rua, estava o
montinho de gente em frente à loja e
me deu vontade de correr para lá, mas eu não podia deixar a academia sem ninguém. Depois chegaram os alunos.
Primeiro chegou um que queria ficar
forte porque tinha espinhas no rosto e voz fina, depois chegou outro que queria ficar
forte para bater
nos outros, mas esse não ia bater
em ninguém, pois um
dia foi chamado para uma decisão e medrou; e chegaram os que gostam de olhar no
espelho o tempo todo e usar camisa de manga
curta apertada pro braço parecer mais
forte; e chegaram os garotos de calças Lee,
cujo objetivo é desfilar na
praia; e chegaram os que só vêm no verão, perto
do carnaval, e fazem uma série
violenta para inchar rápido e eles vestirem suas fantasias de sarong, grego,
qualquer coisa que ponha a musculatura à mostra; e chegaram os coroas cujo
objetivo é queimar
a banha da barriga, o que é muito difícil, e, depois de certo
ponto, impossível; e chegaram os lutadores profissionais: Príncipe Valente,
com sua barba,
Testa de Ferro,
Capitão Estrela, e a turma do
vale-tudo: Mauro, Orlando,
Samuel - estes não dão bola pra modelagem, só querem força para ganhar melhor sua vida no ringue: não se aglomeram na
frente dos espelhos, não chateiam pedindo instruções; gosto deles, gosto
de treinar com eles nas vésperas de uma luta, quando
a academia está vazia; e
vê-los sair de uma montada, escapar de um
arm-lock ou então bater quando consigo um estrangulamento perfeito; ou ainda conversar sobre as lutas que
ganharam ou perderam.
O João voltou, e
com ele Waterloo de roupa nova. João encarregou
o crioulo de arrumar as anilhas,
colocar barras e alteres nos lugares certos, até você aprender
para ensinar".
Já era de noite
quando Leninha telefonou para mim, perguntando
a que horas eu ia
para casa, para casa dela, e eu disse que
não podia passar lá pois ia para a
minha casa. Ouvindo isso Leninha ficou calada:
nos últimos trinta ou quarenta
dias eu ia toda noite
para a casa dela,
onde já tinha
chinelo, escova de dentes,
pijama e uma porção de roupas; ela perguntou se eu estava doente e eu disse
que não; e ela ficou
outra vez calada,
e eu também, parecia
até que nós queríamos ver quem piscava primeiro; foi ela: "Então você não quer me ver hoje?". "Não é nada disso", eu disse, "até amanhã,
telefona para mim amanhã, tá bem?"
Fui para o meu
quarto, o quarto que eu alugava de dona Maria,
a velha portuguesa que tinha catarata no olho e queria me tratar como se fosse um filho. Subi as escadas
na ponta dos pés, segurando o corrimão de leve e abri
a porta sem fazer barulho.
Deitei imediatamente na cama, depois de tirar os
sapatos. No seu quarto a velha ouvia novelas: "Não, não, Rodolfo, eu te
imploro!", ouvi do meu quarto, "Juras que me perdoas? Perdoar-te,
como, se te amo mais que a mim mesmo... Em que pensas? Oh! não me perguntes... Anda,
responde... às vezes
não sei se és mulher
ou esfinge...". Acordei
com batidas na porta e dona Maria dizendo "já lhe disse que ele não
está", e Leninha: "A senhora me desculpe, mas ele disse que vinha
para casa e eu tenho um assunto urgente". Fiquei quieto: não queria ver ninguém. Não queria ver
ninguém - nunca mais. Nunca mais. "Mas ele
não está." Silêncio.
Deviam estar as duas frente a frente. Dona Maria tentando ver Leninha na fraca luz
amarela da sala
e a catarata atrapalhando, e Leninha... (é bom ficar dentro do quarto todo escuro). "...
sar mais tarde?" "Ele não tem vindo, há mais de um mês que não dorme em casa,
mas paga religiosamente, é um bom menino.
Leninha foi
embora e a velha estava de novo no quarto: "Permiti-me contrariá-lo,
perdoe-me a ousadia... mas há um amor que uma vez ferido só encontra sossego no
esquecimento da morte... Ana Lúcia! Sim,
sim, um amor irredutível que paira muito além de todo e qualquer sentimento,
amor que por si resume a delícia do céu dentro do coração...". Coitada da
velha que vibrava com aquelas baboseiras. Coitada? Minha cabeça
pesava no travesseiro, uma pedra em cima do meu
peito... um menino? Como é que era ser menino? Nem isso
sei, só me lembro que urinava com força, pra cima: ia alto. E também me lembro
dos primeiros filmes que vi, de
Carolina, mas aí eu já era grande, doze?, treze?, já era homem. Um homem.
Homem...
De manhã quando
ia para o banheiro dona Maria me viu. "Tu
dormiste aqui?", ela me perguntou. "Dormi." "Veio uma moça te procurar, estava
muito inquieta, disse que
era urgente." "Sei quem é, vou
falar com ela hoje", e entrei
no banheiro. Quando saí, dona Maria me perguntou, "não vais fazer a barba?".
Voltei e fiz a barba.
"Agora sim, estás
com cara de limpeza", disse
dona Maria, que não se
desgrudava de mim. Tomei café, ovo quente, pão com manteiga, banana. Dona Maria
cuidava de mim. Depois fui para a academia.
Quando cheguei
já encontrei Waterloo. "Como é? Está gostando?", perguntei. "Por
enquanto está bom." "Você dormiu aqui?"
"Dormi. O seu João disse para eu dormir aqui." E não dissemos mais nada, até a chegada do João.
João foi logo
dando instruções a Waterloo: "De manhã,
braço e perna, de tarde, peito,
costas e abdominal"; e foi vigiar o exercício do crioulo.
Para mim não deu
bola. Fiquei espiando. "De vez em quando
você bebe suco de frutas", dizia João, segurando um copo,
"assim, ó", João encheu a boca de líquido, bochechou e engoliu
devagar, "viu como é?", e
deu o copo para Waterloo, que repetiu o que ele tinha feito.
A manhã toda
João ficou paparicando o crioulo. Fiquei ensinando
os alunos que chegaram. Arrumei os pesos que espalhavam pela sala. Waterloo só
fez a série. Quando chegou o almoço - seis marmitas - João me disse:
"Olha, não leve a mal, vou repartir a comida com o Waterloo, ele precisa mais
do que você, não tem onde almoçar, está duro, e a comida só dá para dois".
Em seguida sentaram-se colocando as marmitas sobre a mesa de massagens forrada
de jornais e começaram a comer. Com as marmitas vinham sempre
dois pratos e talheres.
Me vesti e saí
para comer, mas estava sem fome e comi dois
pastéis num botequim. Quando voltei, João e Waterloo estavam esticados nas
cadeiras de lona. João contando a história do duro que tinha dado para ser campeão.
Um aluno me
perguntou como é que fazia o pullover reto e
fui mostrar para ele, outro ficou falando comigo sobre o jogo do Vasco e o tempo foi passando e
chegou a hora da série da tarde - quatro horas
- e Waterloo parou perto do
leg-press e perguntou como funcionava e João
deitou-se e mostrou
dizendo que o crioulo ia fazer agachamento que era melhor.
"Mas agora
vamos pro supino", disse ele, "de tarde, peito, costas
e abdômen, não se esqueça.
Às seis horas
mais ou menos o crioulo acabou a série dele.
Eu não tinha feito nada. Até
aquela hora João
não tinha falado
comigo. Mas aí disse: "Vou preparar o Waterloo, aluno
igual a ele nunca vi, é o melhor que já tive , e me olhou, rápido e disfarçado; não quis
saber onde queria chegar; saber, sabia, eu manjo os truques
dele, mas não me interessei. João continuou: "Já viu coisa igual?
Não acha que ele pode ser o campeão?". Eu disse: "Talvez; ele tem quase tudo, só falta um pouco de força e
de massa". O crioulo, que
estava ouvindo, perguntou: "Massa"? Eu disse: "Aumentar um pouco o
braço, a perna, o ombro, o peito - o resto está-", ia dizer ótimo mas disse "bom". O crioulo: "E
força?". Eu: "Força é força, um negócio
que tem dentro da gente". Ele: "Como é
que você sabe que eu não tenho?". Eu ia dizer que era palpite, e palpite é
palpite, mas ele me olhava de uma maneira que
não gostei e por isso: "Você não tem". "Acho que ele tem", disse
João, dentro do seu esquema. "Mas o garotão não
acredita em mim", disse o crioulo.
Para que levar
as coisas adiante?, pensei. Mas João perguntou: "Ele tem mais ou menos
força do que você?".
"Menos",
eu disse. "Isso só vendo", disse o crioulo. O João era o seu João, eu era o garotão: o crioulo tinha
que ser meu faixa, pelo direito, mas não era. Assim é a vida. "Como é
que você quer ver?", perguntei,
azedo. "Tenho uma sugestão", disse João, "que tal uma queda de braço?" "Qualquer coisa
, eu disse. "Qualquer coisa", repetiu o crioulo.
João riscou uma
linha horizontal na mesa. Colocamos os antebraços em cima da linha
de modo que meu dedo médio estendido tocasse o cotovelo de Waterloo, pois meu braço
era mais curto. João disse: "Eu
e o Gomalina seremos os juÍzes; a mão que não é da pegada pode ficar espalmada ou agarrada na mesa; os
pulsos não poderão ser curvados em forma de gancho antes de iniciada a disputa". Ajustamos
os cotovelos. Bem no centro da mesa nossas mãos se agarraram, os dedos
cobrindo somente as falanges dos polegares do adversário, e envolvendo as
costas das mãos, Waterloo indo mais longe pois seus dedos eram mais extensos e
tocavam na aba do meu cutelo. João examinou a posição dos nossos braços.
"Quando eu disser já vocês podem começar." Gomalina se ajoelhou de um
lado da mesa, João do outro.
"Já", disse João.
A gente pode
iniciar uma queda de braço de duas maneiras: no ataque, mandando brasa logo,
botando toda força no braço imediatamente, ou então ficando na retranca,
agüentando a investida do outro e
esperando o momento certo para
virar. Escolhi a segunda. Waterloo deu um arranco
tão forte que quase me liquidou;
puta merda! Eu não esperava aquilo; meu braço cedeu até a metade do caminho,
que burrice a minha, agora quem tinha que fazer força, que se gastar, era eu.
Puxei lá do fundo, o máximo que era possível
sem fazer careta, sem morder os dentes, sem mostrar que estava dando tudo, sem criar moral no adversário. Fui
puxando, puxando, olhando o rosto de Waterloo. Ele foi cedendo, cedendo, até
que voltamos ao ponto de partida, e nossos braços
se imobilizaram. Nossas
respirações já estavam
fundas, sentia o vento que
saía do meu nariz bater no meu braço. Não posso
esquecer a respiração, pensei, essa
parada vai ser
ganha pelo que respirar melhor.
Nossos braços não se moviam um milímetro. Lembrei-me de um filme que vi, em que os dois
camaradas, dois campeões, ficam um longo tempo
sem levar vantagem um do outro, e enquanto isso um deles, o que ia ganhar, o mocinho, tomava whisky e
tirava baforadas de um charuto. Mas ali não era cinema não; era uma luta de
morte, vi que o meu braço e o meu
ombro começavam a ficar
vermelhos; um suor fino fazia
o tórax de Waterloo
brilhar; sua cara começou
a se torcer e senti
que ele vinha todo e o meu braço cedeu um
pouco, e mais, raios!, mais ainda, e ao ver que podia perder isso me deu um
desespero, e uma
raiva! Trinquei os dentes! O crioulo respirava pela boca, sem ritmo,
mas me levando, e então
cometeu o grande
erro: sua cara de gorila se abriu num sorriso e pior ainda,
com a provocação grasnou uma gargalhada
rouca de vitorioso, jogou fora aquele tostão de força que faltava para me ganhar. Um relâmpago cortou minha
cabeça dizendo: agora!, e a arrancada que dei ninguém segurava, ele tentou mas
a potência era muita; seu rosto ficou cinza, seu coração ficou na ponta da
língua, seu braço amoleceu, sua
vontade acabou - e de maldade, ao ver que entregava o jogo, bati com seu punho na mesa
duas vezes. Ele ficou agarrando minha mão, como uma longa despedida sem palavras, seu braço vencido
sem forças, escusante, caído como um
cachorro morto na estrada.
Livrei minha
mão. João, Gomalina queriam discutir o que tinha acontecido mas eu não os ouvia
- aquilo estava terminado. João tentou mostrar o seu esquema, me chamou num
canto. Não fui. Agora Leninha.
Me vesti sem
tomar banho, fui embora sem dizer palavra, seguindo o que meu corpo mandava,
sem adeus: ninguém precisava de mim, eu não precisava de ninguém. É isso, é isso.
Eu tinha a chave
do apartamento de Leninha. Deitei no sofá da
sala,
não quis ficar
no quarto, a colcha cor-de-rosa, os espelhos, o abajur, a penteadeira cheia de
vidrinhos, a boneca sobre a cama estavam
me fazendo mal. A boneca sobre a cama: Leninha a penteava todos os dias, mudava sua roupa -
calcinha, anágua, sutiã - e falava com ela, "minha filhinha linda, ficou com saudades da
mamiquinha?". Dormi no sofá.
Leninha com um
beijo no rosto me acordou. "Você veio cedo,
não foi na academia
hoje?" "Fui", disse
sem abrir os olhos. "E
ontem? Você foi cedo
para a sua casa?" "Fui", agora de olho aberto: Leninha
mordia os lábios.
"Não brinca comigo não, querido, por favor..." "Fui, não
estou brincando." Ela suspirava. "Sei que você foi
lá em casa. A hora
não sei; ouvi você falar
com dona Maria, ela não sabia
que eu estava no quarto." "Fazer uma sujeira
dessas comigo!", disse Leninha, aliviada. "Não foi
sujeira nenhuma", eu disse. "Não se faz uma coisa dessas com...
com os amigos." "Não tenho amigos, podia ter, até príncipe, se
quisesse." "O quê?", disse ela
dando uma gargalhada,
surpresa. "Não sou nenhum vagabundo, conheço príncipe, conde, fique
sabendo." Ela riu:
"Príncipe?!, príncipe! No Brasil não
tem príncipe, só tem
príncipe na Inglaterra, você está pensando que sou boba". Eu disse: "Você é burra, ignorante; e não tem príncipe na Itália? Esse príncipe
era italiano". "E você já foi na Itália?" Eu devia ter dito que já tinha comido uma condessa, que tinha andado com um príncipe
italiano e, bolas, quando você anda com uma dona com quem outro cara também
andou, isso não é uma forma de conhecer ele? Mas Leninha também não ia
acreditar nessa história da
condessa, que acabou tendo um fim triste
como todas as histórias verdadeiras: mas isso não conto
para ninguém. Fiquei
de repente calado
e sentindo a coisa
que me dá de vez em quando, nas ocasiões em que os dias ficam compridos
e isso começa de
manhã quando acordo sentindo uma aporrinhação
enorme e penso
que depois de tomar banho
passa, depois de tomar café passa, depois de fazer ginástica passa, depois do dia passar passa, mas não passa e chega a noite e estou na
mesma, sem querer mulher ou cinema, e no dia seguinte também não acabou. Já
fiquei uma semana assim, deixei crescer
a barba e olhava as pessoas, não como se olha um automóvel, mas perguntando, quem é?, quem é?,
quem-é-além-do-nome?, e as pessoas passando na minha frente, gente pra burro
neste mundo, quem é?
Leninha, me
vendo assim apagado como se fosse uma velha
fotografia, sacudiu um pano na minha frente dizendo, "olha a camisa bacana que comprei para você; veste,
veste para eu ver". Vesti
a camisa e ela disse:
"Você está lindo, vamos na boate?". "Fazer o que na
boate?" "Quero me divertir, meu bem, trabalhei tanto o dia
inteiro." Ela trabalha de dia, só anda com homem casado e a maioria dos homens casados
só faz essa coisa de dia. Chega cedo na casa da dona Cristina e às
nove horas da manhã já tem freguês
telefonando para ela. O movimento maior é na hora do almoço e no fim da tarde; Leninha não almoça nunca, não tem tempo.
Então fomos à
boate. Acho que ela gosta de me mostrar, pois insistiu comigo para levar a camisa nova,
escolheu a calça,
o sapato e até quis pentear
o meu cabelo, mas isso também era demais e não deixei. Ela é gozada, não se incomoda que
as outras mulheres olhem para mim. Mas só olhar. Se alguma dona vier falar
comigo fica uma fera.
O lugar era
escuro, cheio de infelizes. Mal tínhamos acabado de sentar um sujeito passou
pela nossa mesa e disse: "Como vai, Tânia?".
Leninha respondeu: "Bem obrigada, como vai o senhor?". Ele também ia
bem obrigado. Me olhou, fez um movimento com a cabeça como se estivesse me cumprimentando e foi para a mesa dele.
"Tânia?", perguntei. "Meu nome de guerra", respondeu
Leninha. "Mas o teu nome de guerra não
é Betty?", perguntei. "É, mas ele me conheceu na casa da dona
Viviane, e lá o meu nome de guerra era Tânia."
Nesse instante o
cara voltou. Um coroa, meio careca, bem vestido,
enxuto para a idade dele. Tirou Leninha para dançar. Eu disse: "Ela
não vai dançar não, meu chapa". Ele talvez tenha ficado vermelho,
no escuro, disse: "Eu pensei...". Não dei
mais pelota pro idiota, ele estava ali, em pé,
mas não existia. Disse
para Leninha: "Esses caras vivem pensando, o mundo está cheio
de pensadores". O sujeito sumiu.
"Que coisa
horrível isso que você fez", disse Leninha, "ele é meu cliente
antigo, advogado, um homem distinto, e você fazer uma coisa dessas com ele. Você foi muito grosseiro." "Grosseiro foi ele, não viu que você estava
acompanhada, por - um amigo, freguês, namorado, irmão, fosse o que
fosse? Devia
ter-lhe dado um pontapé na bunda. E que história
é essa de Tânia, dona Viviane?" "Isso é uma casa antiga
que freqüentei." "Casa antiga? Que casa antiga?" "Foi logo que me perdi, meu
bem... no princípio...
É de amargar.
"Vamos
embora", eu disse. "Agora?" "Agora."
Leninha saiu
chateada, mas sem coragem de demonstrar. "Vamos pegar
um táxi", ela disse. "Por quê?", perguntei, "não sou rico para andar
de táxi." Esperei que ela dissesse
"o dinheiro é meu", mas ela não disse;
insisti: "Você é boa
demais para andar
de ônibus, não
é?"; ela continuou calada; não desisti: "Você é uma mulher
fina"; - "de classe; - "de categoria". Então ela falou, calma, a voz certa, como se nada
houvesse: "Vamos de ônibus".
Fomos de ônibus
para a casa dela.
"O que que
você quer ouvir?", perguntou Leninha. "Nada", respondi.
Fiquei nu,
enquanto Leninha ia ao banheiro. Com os pés na beira da cama e as mãos no
chão fiz cinqüenta mergulhos. Leninha voltou nua do banheiro. Ficamos os dois nus, parados dentro do quarto, como
se fôssemos estátuas. No princípio, esse princípio era bom: nós ficávamos nus e
fingíamos, sabendo que fingíamos, que estávamos à vontade. Ela fazia pequenas coisas, arrumava a cama, prendia os
cabelos mostrando em todos os
ângulos o corpo firme e saudável
- os pés e os seios, a bunda e os joelhos, o ventre e o pescoço. Eu fazia uns mergulhos, depois
um pouco de tensão de Charles Atlas,
como quem não quer nada, mas mostrando o animal perfeito que eu também era,
e sentindo, o
que ela devia também sentir, um prazer enorme
por saber que estava sendo observado com desejo, até que ela olhava sem rebuços para o lugar certo
e dizia com
uma voz funda
e arrepiada, como
se estivesse sentindo o medo de quem vai se atirar num abismo, "meu bem", e então a representação terminava e partíamos um
para o outro como duas crianças aprendendo a
andar, e nos fundíamos e fazíamos loucuras, e não sabíamos de que garganta os
gritos saíam, e implorávamos um ao outro que parasse mas não parávamos, e
redobrávamos a nossa fúria, como se
quiséssemos morrer naquele momento de força, e subíamos e explodíamos, girando
em rodas roxas e amarelas de fogo que saíam dos nossos olhos
e dos nossos ventres e dos
nossos músculos e dos nossos
líquidos e dos
nossos espíritos e da nossa dor pulverizada. Depois a paz:
ouvíamos alternadamente o bater forte dos nossos corações sem sobressalto; eu
botava o meu ouvido no seu seio e em
seguida ela, por entre os lábios exaustos,
ela soprava de leve o meu peito, aplacando; e
sobre nós descia um vazio que era como se a gente tivesse perdido a memória.
Mas naquele dia
ficamos parados como se fôssemos duas estátuas. Então me envolvi no
primeiro pano que encontrei, e ela fez o
mesmo e sentou-se na cama e disse "eu sabia que ia acontecer", e foi isso,
e portanto ela,
que eu considerava uma
idiota, que me fez entender o que tinha acontecido.
Vi então que as mulheres têm dentro delas uma coisa que as faz entender o que
não é dito. "Meu bem, o que que eu fiz?", ela perguntou, e eu fiquei
com uma pena danada dela; com tanta pena que deitei ao seu lado, arranquei a
roupa que a envolvia, beijei
seus seios, me excitei pensando em antigamente, e
comecei a amá-la, como um operário no seu ofício, e inventei gemidos, e
apertei-a com força calculada. Seu rosto começou a ficar úmido, primeiro em torno
dos olhos, depois
a face toda. Ela disse:
"O que que vai ser de você sem mim?", e com a voz saíram
também os soluços.
Botei minha
roupa, enquanto ela ficava na cama, com um braço sobre os olhos. "Que horas são?", ela perguntou. Eu disse: "Três e quinze". "Três e quinze... quero marcar
a última hora que estou
te vendo...", disse
Leninha. E não adiantava eu dizer nada e por isso saí, fechando a porta
da rua cuidadosamente.
Fiquei andando
pelas ruas vazias e quando o dia raiou eu
estava na porta da loja de discos louco que ela abrisse. Primeiro chegou um cara que abriu a porta de aço, depois outro que lavou a calçada e
outros, que arrumaram a loja, puseram
os alto-falantes para
fora, até que
afinal o primeiro disco foi colocado e com a música eles começaram a surgir de suas covas,
e se postaram ali comigo, mais quietos do que numa igreja. Exato:
como numa igreja, e me deu uma vontade de rezar, e de ter amigos, o pai vivo, e
um automóvel. E fui rezando
lá por dentro
e imaginando coisas,
se tivesse pai
ia beijar ele no rosto, e na mão tomando bênção, e
seria seu amigo e seríamos ambos
pessoas diferentes.
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