domingo, 3 de julho de 2022

Crônicas de Segunda Na Usina: Machado de Assis: 1º. DE JANEIRO DE 1863:


Abre-se o ano de 63. Com ele se renovam esperanças, com ele se fortalecem desanimados. Reunida à família em torno da mesa, hoje mais galharda e profusa, festeja o ano que alvoroce, de rosto alegre e desafogado coração. 62, decrépito, enrugado, quebrantado e mal visto, rói a um canto o pão negro do desgosto que lhe atiram tantas esperanças malogradas, tantas confianças iludidas. Pobre ano de 62! Deverei eu entrar no coro dos acusadores? Que podias fazer? Tiveste contra ti os elementos, o céu e a terra, os homens e as coisas; a tua vontade era sincera, mas a tua força era comparativamente nula. Toma o bordão e segue o caminho da eternidade; olha sem desgosto as festas com que é recebido teu jovem irmão; daqui a doze meses, estará como tu, velho, enrugado, mal visto e apupado. É a eterna ordem das coisas. 
63 alvorece entre palmas e beijos. Será teu horizonte límpido e sereno, nenhum ponto negro, ao longe, fará estremecer os espíritos? Não; 62 lega a 63 uma pesada herança; guerras, perturbações, descrenças, ódios, malquerenças, pirraças ; nações sem rei, à cata de rei ; reis sem trono, à cata de trono ; reis constitucionais sem constituição ; luta de irmãos, rusgas de primos ; papa-rei em Roma, rei-papa na França ; o Oriente tempestuoso, o Ocidente enublado ; o argumento em duelo com o sofisma ; a mentira com a verdade, a boa fé com a velhacaria ; miragens poéticas no sul, no norte, no oeste, de um pólo a outro, da parte de Aquiles, da parte de Heitor ; a indecência triunfante, o decoro vilipendiado, a sinceridade mal entendida ; a loucura no fastígio, o bom senso ao sopé ; imagem do caos, enfim, onde se abalroam, procurando solução, duro e mole, o que é leve e o que é pesado. 
Tal é o fardo que 62 põe nos ombros de 63. Terá 63 força para pôr ordem a esta balbúrdia? Duvido; é tarefa superior às forças de um ano; mas ele fará o que puder, estou certo. 
E entre todas as sérias questões, a do Amazonas não tem lugar distinto? Certo que sim. Que resultará desta pendência entre o Império e a República Peruana? Confesso que não sei nem a ninguém é dado prever o futuro nas coisas do meu país. Mesmo confessando as boas intenções dos que vão ao leme do Estado, há razão para abstrair da lógica e contar com o imprevisto e com o absurdo. As últimas notícias do Amazonas não são animadoras; é com receio que espero as notícias próximas; afigura-se-me que hão de ser piores, por mal da nação, e por glória do nosso rixoso co-ribeirinho. 
Não é raro fazermos triste figura nas nossas pendências internacionais; anda nisto uma fatalidade, quero crê-lo; a idéia de um império enguiçado é menos desanimadora que outra fácil de compreender, e que eu deixo ficar tranqüilamente no tinteiro. As lições do passado servem de espelho ao presente e ao futuro, e o nosso receio é deste modo natural. 
Às leitoras parecerão diminuídas desta importância as considerações que acabo de fazer. E realmente como poderiam esses tenros espíritos apreender-se destes receios e destas angústias? No momento do perigo, do perigo palpável, do perigo visível, eu sei, a mãe manda seus filhos à batalha, a esposa separa-se facilmente do esposo, a irmã do irmão. Mas por agora, que estamos nos preliminares e em pleno verão, que idéia terá suspenso o espírito da leitora? Ir para Petrópolis ou para a Tijuca, fugir ao fogo que toda a cidade respira, ir beber nas auras das montanhas o ar puro e fresco que insinua a paz e o descanso no espírito. Que impedimento a detém? Que razão lhe fechará o caminho, que revista da quinzena a obrigará a estar presente na corte? Nada dessas coisas; escolhido o ponto da emigração, pronta a mala, escolhidos os livros... Ah! Por falar em livros escolhidos, aconselho às leitoras que juntinho ao abade Smith, simples e cândido pela forma e pelo fundo, páginas escritas, reunidas por um talento que alvorece, terno e ingênuo, o Lírio Branco de Luiz Guimarães Júnior. 
Leia a história de Coração (é o nome da heroína) que ganhará boas e doces impressões; valerá o mesmo que passear o olhar por um horizonte azul e puro, tal é a inocência dos amores do par de que trata o livrinho. Maria da Conceição é um nome que eu acho lindo e que compete a certas criaturas entre a terra e o céu; o sentimento geral é que é um nome ridículo e prosaico, pois veja a leitora com que arte o autor sabe dizer que a heroína da história, a menina dos quinze anos, chama-se Maria da Conceição, de maneira a não repugnar aos paladares comuns. Coração, explica depois o autor, era o nome dado entre família. 
Depois ajunte a leitora alguns versos queridos, escritos por despedida, com lágrimas, com sentimento, alguma flor seca recendendo o perfume da mão que primitivamente a teve, aí está uma bagagem que há de fazê-la passar um verão feliz. 
Quanto a mim, cá fico para assistir de perto aos acontecimentos; para ir ver os acrobatas da Guarda Velha e do teatro de S. Pedro; para assistir aos aplausos que hão de saudar dois jovens talentos dramáticos, os autores da Túnica de Nessus e da Mancenilha, anunciadas pelo Ateneu, e mais os que aparecerem; cá, fico, no meio do pó, do calor, condenado a não arredar pé do cepo fatal. 
Sem pó e sem calor, e pelo contrário, debaixo de copiosa chuva, foram alguns intrépidos amantes da boa música e dos bons talentos a S. Domingos no dia 17, para onde os convidaram por carta os Srs. capitão de mar e guerra José Secundino Gomensoro, brigadeiro M. E. de Castro Cruz e Antonio Ignácio de Mesquita Neves, promotores de um concerto dado por Antonio Luiz de Moura. 
Moura é um distinto professor de clarineta, devendo ao seu merecimento a sua infelicidade, consórcio quase infalível no nosso país. 
Os intrépidos que puderam atravessar a baía para ir assistir ao concerto não eram em grande número. Nem por isso a reunião deixou de ser animada, ou talvez que por essa circunstância tivesse mais animação. A pouca gente dá certo ar de família e põe mais a gosto convidados e concertistas. Foi o que aconteceu 
A escolha de um sítio camparesco foi bem avisada, e, a não ser a chuva, o que a festa perdeu ganharia em dobro. Pena é que por estes tempos se deva forçosamente contar com a chuva, o que infelizmente não entra nos cálculos de ninguém. 
Tomaram parte no concerto vários amadores de mérito, e para não estender-me em mais detalhada apreciação, que não posso, à míngua de espaço, citarei entre todos o nome da Exma. Sra. D. Maria Leopoldina de Mello Neves, esposa de um dos signatários das cartas de convite. 
Hoje há uma reunião, não musical, mas literária e musical, no salão da Phil Euterpe. É dada pela sociedade Ensaios Literários, que completa quatro anos de existência. Os membros desta modesta associação seguem assim o exemplo salutar do Grêmio e do Retiro literário. Deus queira que a chuva não afugente ninguém. 
Acabo de receber um novo volume da Biblioteca Brasileira; mal deitei os olhos ao rosto do livro; é um romance traduzido, que se intitula Lady Clare. Na próxima crônica direi o que pensar da obra. 
Passarei a mencionar a inauguração do retrato de Francisco de Paula Brito, na sala das sessões da Sociedade Petalógica. Paula Brito foi amigo desta associação, que em sua casa se fundou; durante longos anos os membros da Petalógica tiveram nele um dedicado companheiro, de amigo velho e provado que era. O dia 15, aniversário da morte de Paula Brito, foi escolhido para a cerimônia da inauguração do seu retrato. Esta foi simples e modesta, como pedia o caso. Reunidos os amigos do finado, vários pronunciaram algumas palavras de saudade, e assim ficou realizada a tocante idéia. Paula Brito merecia estes sinais de gratidão saudosa que dão à sua memória seus amigos de tantos anos. 
Para terminar, convido a leitora a pôr de parte o Futuro; o que me resta mencionar nada tem de imaginoso, é de natureza positiva, há de enfadá-la, aborrecê-la, coisa que nem suspeitar é bom. E para entrar bruscamente em matéria dir-lhe-ei: - trata-se do Lloyd Brasileiro. O que é Lloyd? É uma associação, cujos estatutos dependem da aprovação do governo. O governo, que afere a importância das coisas pelo seu maior ou menor caráter positivo, não tem razão para dormir sobre a solução pedida. Ora, tanto quanto posso ver nesta matéria, parece-me que as relações comerciais ganham com a organização do Lloyd, que estabelece a segurança nos transportes por mar, e põe termo a muitos inconvenientes que existem hoje. Cabia descer a maiores explicações, mas nem tempo nem espaço tenho para isso. 
Leitor, boas festas.

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