domingo, 24 de julho de 2022

Crônicas de Segunda na Usina: Machado de Assis: 31 DE JANEIRO DE 1863:


Houve sempre incúria em fazer o Brasil a sua propaganda na Europa, conveniência fácil de compreender por todos, mas que o governo nunca compreendeu, ou tratou por alto. É cabido, portanto, mencionar com louvor a fundação do Brésil, jornal escrito em francês pelos redatores da Atualidade, e publicado à entrada e saída dos paquetes transatlânticos. Trata-se de se nos apresentar na Europa com imparcialidade e justiça os redatores da Atualidade não deixam dúvida alguma a este respeito e há até a esperar muito deles. Partindo de alguns cidadãos, esta medida que o governo deveria iniciar, há de produzir mais efeito do que se partira do governo. É positiva a diferença que vai da propaganda por convicção e por amor do país, à outra propaganda menos espontânea embora tão convicta. 
O Brésil entra no 3.° número a hora em que escrevo. As empresas desta ordem merecem ordinariamente os sorrisos da incredulidade, atento o exemplo mais que muito repetido, de não passarem, como as crianças mofinas, do período de dentição. A Atualidade, porém, pode atestar a força de vontade dos redatores do Brésil. Começada no ano de 1857, atravessou ela cinco anos sem descorar diante das dificuldades, e dando um grande exemplo de perseverança. O irmão mais moço da Atualidade não há de ser menos opulento de vida e de tenacidade. 
Um dos últimos paquetes trouxe um livro português, que na sua pátria teve grande aceitação, graças principalmente ao assunto de que trata. É a paródia do 
D. Jaime, feita pelo Sr. Roussado, intitulada Roberto ou a dominação dos agiotas. É um verdadeiro poema cômico? Não; não se pode dizer isso na literatura que possui o Hyssope e as sátiras de Tolentino, que são outros tantos poemas; mas, como amostra de um poeta de futuro, acho que deve ser lido o Roberto. 
O Sr. Roussado mostra ter facilmente, e algumas vezes, graça na locução; mas a designação de poema herói-cômico só poderia caber ao livro, quando todas as condições necessárias ao gênero estivessem preenchidas; no poeta cômico devem concorrer qualidades tão superiores como no poeta épico, porque ambos os gêneros se tocam, e daqui vem chamar Victor Hugo ao D. Quixote a Ilíada cômica. Estas qualidades superiores não se nos descobrem no Roberto. Todavia, ocultar o que o Sr. Roussado tem de bom, fora injustiça clamorosa; já assinalei a facilidade e graça do seu verso, acrescentarei que alguns pedaços do poema de D. Jaime foram parodiados com acerto e certa originalidade. 
No Ateneu e no Ginásio deu-se uma comédia em 3 atos de Lambert Tiboust e Théodore Barrièe. É uma composição burlesca, mas verdadeiramente chistosa, cheia de interesse e de lances cômicos, trazidos com sacrifício de verossimilhança, mas tratados com uma verve inesgotável. Uma crítica que não for muito exigente pode até achar no caráter de Pincebourde algum estudo. O desempenho no Ateneu, onde a vi, pareceu-me, certas reservas de parte, muito satisfatório. 
Para terminar a história da quinzena perguntarei ao leitor: - Conhece uma árvore, que Alá pôs em Java, como diz o Jáo, por nome mancenilha, tão maléfica que dá a morte a quem procura a sombra dela? O nome dessa árvore tomou-a para título de uma comédia, em um ato, um jovem estreante na carreira dramática, o Sr. J. Ferreira de Menezes. Qual é o objeto simbolizado no arbusto asiático? É o casamento, não na expressão absoluta, mas na prática especialíssima da união de um rapaz incauto com uma mulher fria, vaidosa, preferindo as rendas e o carmim às santas carícias do matrimônio. Que assunto comum! é a história de todos os dias, dirá o filósofo imberbe ou o marido nas mesmas circunstâncias. Seja, embora; comum não é de certo a comédia do Sr. Ferreira de Menezes, onde se perdoam as faltas ao par das muitas promessas e algumas boas realidades. 
É evidente que um casamento nas condições apontadas não podia ser estudado em todas as suas fases, dentro dos limites de um ato. O Sr. Ferreira de Menezes não quis mais que traçar uma silhueta, sem pretensão a fazer um estudo, o menos profundo que fosse da hipótese que figurou. Para apreciar a obra do Sr. Ferreira de Menezes é preciso não perder de vista esta circunstância. 
Mas esta circunstância livra-o de culpa e pena? Sou amigo do poeta, e tenho, portanto, dois motivos para dizer francamente que não. Por desambiciosas que fossem as suas intenções, há condições rigorosas a que o poeta não se podia esquivar, e essas, entre os quais avulta a de precisar e definir os caracteres, não as teve o poeta como essenciais. Talvez que, desbravada a comédia das imaginações e fantasias, apareça uma ou outra feição característica das personagens, mas como ir procurá-la através de tanta folha e flor enredada, ao capricho de um pensamento ainda não regulado pela arte? 
O que resulta, é que o espectador, sem deslembrar a linguagem pouco amorosa de Margarida, não acha, em resumo, que houvesse motivo para as lamentações de Victor e as prédicas de Ernesto; por quando há uma coisa a notar: Margarida é mais mancenilha pelas asserções de Ernesto e Victor de que por seus próprios atos; e quando na cena de conversão ela se defende, tornando-se acusadora, se o espectador lhe não dá razão, também não dá razão ao poeta. 
Este inconveniente, junto ao de cenas muito longas, tira à peça, não o interesse do espectador culto e paciente, mas o interesse da massa geral do público, com o qual se deve contar. 
Feitos estes reparos, cumpre-me acrescentar que o autor da Mancenilha, com a sua comédia, obrigou-se solenemente a escrever novas peças; esta é apenas um ensaio, mas um ensaio onde o poeta, ao lado dos defeitos, mostrou verdadeiras qualidades. Sabe travar o diálogo, dar-lhe mesmo certo sabor e torneado que não são comuns em nossa cena; falta-lhe muitas vezes a concisão, tão necessária ao efeito do teatro, de modo que lhe acontece diluir um pensamento em muitas palavras, ou vesti-lo de formas tais que escapa ao espírito da maioria dos espectadores. 
A sua composição há de parecer melhor no livro, onde as delicadas fantasias do poeta podem entrar mais livremente no espírito, onde as suas qualidades serão melhor apreciadas, onde até, estou certo, aparecerá certa limpidez que na exibição cênica me pareceu nula. 
O Ateneu, levando a cena a Mancenilha, deu mais uma prova de que toma a sua missão como um empenho de honra, e que procura contribuir para o engrandecimento do teatro nacional com verdadeiro desvelo.

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