domingo, 24 de julho de 2022

Crônicas de Segunda na Usina: Machado de Assis: 15 DE FEVEREIRO DE 1863:


Cinco ou seis dias depois da abertura da exposição fui à Academia das Belas Artes. Cuidava encontrar ali uma diminuta concorrência, a dessa pouca gente que neste país conhece a preza as artes. Calcule o leitor o meu espanto quando tive de atravessar aquelas salas desertas, onde as telas, as estátuas e os baixo-relevos pareciam olhar-se mutuamente como que desolados por tão cruel abandono. 
Provará este fato contra a Academia? Ter-se-iam desfeito as esperanças postas naquela escola tão custosamente criada? 
As proporções deste escrito não permitem uma séria e detida análise deste ponto; mas não deixarei de atestar duas coisas, uma contra, outra a favor da Academia; a primeira, é que realmente os resultados da Academia estão abaixo das esperanças e das legítimas previsões; a segunda, é que esse malogro procura hoje a Academia atenuá-lo por meio de alguns esforços. Todos os esforços serão poucos, e se a Academia não se convencer disto, demite-se de uma posição que pode vir a ser gloriosa, se for fecunda. 
A exposição este ano foi aumentada com algumas cópias de obras-primas que estão nos museus da Europa. Entre essas cópias avulta a do corpo de Hércules, desenterrado em Roma, no Campo di fiori e guardado hoje no museu do Vaticano. É o resto de uma estátua que devia ser admirável, à vista do tronco mutilado e carcomido; nota-se mais Antinoo, cujo original existe no Capitólio; Apollonio, da Galeria de Florença; a Venus d'Arles da mesma; a Amazona e outras. São também dignos de atenção os trabalhos litográficos oferecidos à Academia pelo próprio autor, o Sr. Brasscsat. São dois quadros: primeiro representa Uma luta de touros, o segundo Touros defendendo uma vaca. 
Acham-se esses quadros na sala do vestíbulo, onde também se encontram duas gravuras delicadas de execução, representando uma A destruição de Jerusalém, e outra A dispersão dos povos, cópias ambas de painéis existentes no museu de Berlim. 
Se penetrarmos na Sala de pintura, encontraremos em primeiro lugar alguns retratos do Sr. Carlos Luiz do Nascimento, conservador da Pinacoteca, dos quais dois apenas me pareceram completamente bons. Isto deve ser dito acompanhado de um louvor ao Sr. Nascimento pelos seus excelentes trabalhos de restauração que o tornam artista notável e indispensável naquela escola. 
O Sr. Victor Meirelles de Lima tem alguns quadros nessa sala, os quais, parecendo bons, não são notáveis, pelo menos quanto é notável a sua Cabeça de estudo sob n.º 7. O mesmo artista tem na exposição o seu quadro A primeira missa no Brasil, obra já conhecida, e que, a não ter desses defeitos sutis que não se revelam à minha incompetência, me parece um painel excelente. 
A exposição do Sr. Agostinho José da Motta peca por pequena e medíocre; os seus retratos não são obras tais que o Sr. Motta, talentoso professor da Academia, preferisse às paisagens que tão bem sabe pintar; quem o não conhecer e quiser julgar pela exposição deste ano, fica com uma idéia muito aquém daquilo a que o seu talento tem direito. 
Do Sr. Arsênio da Silva existem na exposição algumas paisagens onde há toques delicados e verdadeiramente artísticos; mas é pena que o seu pincel se escape em outros toques, por vezes tão carregados, que fazem destacar no conjunto de seus painéis. 
A exposição do Sr. Emilio Bauch pareceu-me insignificante. A volta do casamento, no norte do Brasil, é um quadro de muito repreensível execução; o vagalhão sobre que se levanta o batel do noivado parece solidamente construído de madeira, tal o seu aspecto pesado e duro; se examinarmos a vela, a flâmula e as roupas dos tripulantes da barca, acharemos que muitos ventos sopram naquele sítio; ao passo que um impele o barco em uma direção, outro em direção oposta faz tremular brandamente a flâmula ; e um terceiro brinca ao capricho do pintor com os colarinhos e as japonas da tripulação. 
O quadro do Sr. Julio Le Chevrel Paraguassú e Diogo Álvares Correia têm coisas boas e coisas más. A figura de Diogo Correia recebendo Paraguassú das águas não tem expressão alguma; e uma cara morta; o mesmo acontece com a indígena. Como esteja Paraguassú quase toda fora d'água, quis-lhe o pintor espalhar pelo corpo umas gotas, mas tão infeliz se houve no trabalho, que, trazida a figura ao tamanho natural, ficam aquelas gotas do tamanho de grandes ovos, senão que já o seu aspecto é o de enormes pérolas; dissera-se que, ao salvar-se no bote de Correia, Paraguassú rompera um colar de pérolas que lhe vão rolando pelo corpo abaixo. Há, além destes, outros defeitos que não posso enumerar por me ir faltando espaço e não tê-los neste momento de memória. 
Na exposição de escultura há um grupo do Sr. Léon Deprez de Cluny, representando Uma família de selvagens atacada por uma serpente. Os animais mortos que jazem no chão. São que há de mais notável neste grupo: o mais ou regular ou falso; na ordem do falso está a indígena, cuja cara com uma leve correção fica puro caucasiano. 
É digno de nota o busto em mármore do Sr. conselheiro T. G. dos Santos, e digno de animação o artista que o fez, que é o Sr. José da Silva Santos. É um dos melhores trabalhos da Academia. 
Na exposição dos artefatos da indústria nacional sobressaem os trabalhos de fundição de ferro e bronze do Sr. Miguel Couto dos Santos e a encadernação da Constituição Belga, obra do Sr. J. B. Lombaerts. 
Naturalmente, escrevendo alguns dias depois da minha visita à exposição, deixo de mencionar alguma coisa que talvez mereça essa distinção, mas nem já, agora é dado remediar o mal, se mal há nisto, nem eu quisera por modo algum tornar estes simples apontamentos da minha crônica em revista crítica de Artes liberais. 
A quinzena que findou foi puramente artística e literária. Passo às notícias literárias. Tenho em primeiro lugar nas minhas notas as Produções poéticas de Francisco José Pinheiro Guimarães, grosso volume contendo o Child-Harold e o Sardanapalo, de Byron, o Roubo da Madeira de Pope, e o Ernani de Victor Hugo. 
O nome de F. J. Pinheiro Guimarães é conhecido por quantos estimam e prezam as letras; mas sinceramente creio que a nomeada do finado poeta não está na altura de seu brilhante talento. É que esse talento curava pouco de publicidade; e poetizava por natureza, como as flores dimanam cheiros, como uma necessidade fatal, sem que o pensamento de glória o preocupasse e fizesse pensar detidamente no futuro. Desta desambição, tão rara quanto funesta, deriva o nenhum caso que o poeta parecia fazer de seus versos, mal os acabava, como nos comunica o Sr. Dr. Otaviano no prefácio do livro. 
Se as Produções Poéticas são, portanto, uma revelação para muita gente, para todos quase é certo, que essa revelação é das mais indisputáveis. Uma locução menos branda, um verso menos correto, são defeitos esses que o leitor perspicaz não deixará de notar nas traduções mais de uma vez; mas o poeta não desceu às terras chãs de revisão literária, e essa é a explicação da ausência de outras belezas que a obra viria a ter. Em qualquer caso serve a declaração do autor do prólogo de que o poeta nacionalizou brasileiro a três poetas. 
As dores da pátria inspiram sempre as almas poéticas; e a musa, nas crises nacionais, sabe erguer a sua voz como um protesto solene e uma suprema consolação. Revelação para mim e para muita gente foi o folheto de versos patrióticos publicados por L. Varela. Dizem ser este moço um estudante de direito, e ter já, escrito e publicado outros versos. Não me lembro de tê-los lido; o talento que escreveu os versos patrióticos, onde quer que se revelasse, devia deixar um perfume próprio para se não esquecer. 
Os Cantos patrióticos merecem, pois, de minha parte uma dupla atenção, por seu mérito intrínseco e por serem os primeiros versos do poeta que conheço. Essa atenção já, eu lhe dei, lendo-os, relendo-os, conservando-os entre os livros mais do meu gosto. Segue-se daqui, que os Cantos sejam obra perfeita, que não haja ali certa pompa extrema e afetada, defeito de forma às vezes, e às vezes vulgaridade de pensamento? Dizer que não, seria enunciar o que não está no meu espírito; e eu antes de tudo devo a verdade ao poeta. Mas, a par dos defeitos dos seus cantos patrióticos, há belezas dignas de apreço; moço como é o Sr. Varela tem diante de si um futuro que a aplicação e o estudo dos mestres tornará glorioso. 
Com a publicação do IX volume da Biblioteca Brasileira, termino a parte literária da quinzena. 
Contém este volume a primeira parte do romance do meu finado amigo Dr. Manoel Antonio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias. A obra é bem conhecida, e aquela vigorosa inteligência, que a morte arrebatou dentre nós, bastante apreciada, para ocupar-me neste momento com essas páginas tão graciosamente escritas. 
Enquanto se não reúnem em volume os escritos dispersos de Manoel de Almeida, entendeu Quintino Bocaiúva dever fazer uma reimpressão das Memórias, hoje raras e cuidadosamente guardadas por quem possui algum exemplar. É para agradecer-lhe esta piedosa recordação do nosso comum amigo.

 


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