quinta-feira, 19 de maio de 2022

Sexta na Usina: Poetas da Rede: Macedo Martins:


 

A DESCIDA AO INFERNO

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Continuo a viajar pelo espaço e pelo tempo

já cansado, retiro a seringa e a borracha do braço e deixo-me adormecer

acordo num absoluto deserto de areia vermelha, debaixo de um sol abrasador

devagar levanto-me, visto-me, calço-me, coloco os óculos de sol e ajusto o relógio ao pulso

estou pronto para percorrer os túneis basálticos que me esperam sob a areia vermelha

sinto a florescência a aumentar… ao avançar…

a temperatura desce…

mais luz e menos calor perturba-me os sentidos

sento-me numa poltrona de pedra preta

duas sereias aproximam-se para me satisfazerem desejos íntimos

secretos segredos que possuo há muito…

uma acende-me o cohiba e a outra gela-me o vodka…

muitos séculos depois ergo-me, para me voltar a sentar e agora disposto a ouvir conselhos

mas só sinto um cobertor, um cachecol e um empurrão para baixo

assim desço por lisas escadas de pedra… até ao inferno…

aqui o café é sempre quente e os cigarros não se pagam nem se apagam

as doenças venéreas não são sexualmente transmissíveis,

aqui não se veem crianças com fome ou velhos sem teto,

nem sequer animais abandonados…

é só o frio…

só o frio…

por isso, as sereias, antes de me empurrarem cobriram-me com um cobertor e ofereceram-me um cachecol

sou um só espírito, mas muitos pecados acompanham-me

o purgatório era uma macia poltrona de basalto,

aonde eu fumava e bebia, com sereias

mas o inferno não é, nem escuro nem quente

é tão claro que cega todos os sentidos

totalmente branco e completamente gelado…

o vazio é tão grande que só recordo o desejo de esquecer

e jamais me lembro de o fazer.. .

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M.PIPER

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