sábado, 21 de maio de 2022

Contos da Usina: Artur Azevedo: ÚTIL INDA BRINCANDO: A Urbano Duarte:

 



Uma noite o Leopoldo das Neves encontrou no Passeio Público o Viriatinho da Estrada de Ferro, um bom camarada que há muito tempo não via. 
E, como os dois amigos se encaminhassem para o terraço, o Viriatinho chamou a atenção do outro para uma bonita mulher que descia a escada em companhia de um sujeito gordo. 
— Oh! diabo! é a Clotilde! exclamou o Leopoldo das Neves. 
E, levando o amigo pelo braço, embarafustou com ele pela sombria alameda que contorna o lago. 
— Que é isso? Foges daquela mulher? 
— Como o diabo da cruz. 
— Por que? 
— Porque me amola; se me visse, eu seria amanhã obrigado a explicar-lhe o que vim fazer ao Passeio 
Público! 
— Amola-te? Ora essa! Eis ali o caso de dizer que dá Deus nozes... 
— Perdão, tenho muito bons dentes! 
— Nesse, és difícil! 
— A Clotilde não é o meu tipo. 
— Pois é bonita como seiscentos diabos! 
— Não nego! mas o meu ideal é outro. Quisera que a minha amante fosse alta, magra, loura, alva, de 
olhos azuis, e tivesse vinte e quatro anos, quando muito. Quisera também que fosse viúva, conhecesse um pouco a Europa, e, sem ser literata nem artista, gostasse das letras e das artes. 
— Quiseras muitas coisas juntas! 
— A Clotilde é o contrário de tudo isso: é mais baixa que alta, é mais gorda que magra, é morena, tem olhos castanhos, e já completou a idade exigida para a senatoria... 
— Do Império? 
— Não; da República. - É a digna esposa daquele negociante anafado e suarento que viste passar; adormece no Lírico ouvindo o Otelo; dá o cavaquinho pelos cromos de Guimarães Ferdinando, e delicia-se com a leitura de Xavier de Montepin, - traduzido, note-se, porque nem ao menos sabe francês!... 
— E as tuas relações com ela têm tido caráter platônico... ou... positivo? 
— Ah, meu amigo, eu dei-lhe, infelizmente, amplo direito de perseguir-me... 
— Maganão! 
— Quem principiou fui eu. Que queres?... a curiosidade... o vício... a poesia do adultério... Como isso foi? Não sei. Um encontro numa soirée familiar... um aperto de mão mais forte... uma valsa... durante a valsa uma troca de lenços... no lenço dela um perfume capitoso e enervante... uma carta minha que ficou sem resposta... outra... outra ainda...outra, que foi respondida afinal... uma entrevista concedida depois de uma luta homérica entre duas fomes de beijos... 
— Bonito! 
— Uma entrevista em casa de uma cartomante da rua da Assembléia... Duas horas de prazer, e quatro anos de cativeiro e arrependimento! 
— Quatro anos? 
— Sim, meu Viriatinho, há quatro anos que isto dura; há quatro anos hipotequei a minha liberdade, o meu sossego, e o meu bom humor; há quatro anos vivo aguilhoado a essa mulher, que se encontra comigo de oito em oito, de quinze em quinze dias, furtivamente, às pressas, mas que me escreve todos os dias, e me atormenta com protestos, exigências, lamúrias, ameaças!... 
E Leopoldo das Neves interrompeu a lista das impertinências de Clotilde, batendo violentamente com a bengala na relva: 
— Quatro anos! Há quatro anos - calcula! - tenho o coração nas mãos, receoso de que de um momento para o outro o marido descubra tudo, ponha-a na rua a pontapés, e eu seja obrigado a ficar com aquela trouxa às costas!... 
— Vejo que já não a amas. 
— Nem nunca a amei. Foi um capricho... Quinze dias depois da nossa primeira entrevista em casa da cartomante, já eu me sentia farto e aborrecido! 
Os dois amigos encaminharam-se para o terraço. 
A noite estava esplêndida. Não havia luar, mas os astros brilhavam intensamente na profunda escuridão do céu. As ondas, derramando-se na praia, pareciam alvíssimas rendas franjando uma enorme colcha azul. 
— Queres um conselho, Viriato? Foge das ligações dessa espécie. 
— Ah! de que me serve o teu conselho? 
— Por que? 
— Aqui onde me vês, estou ralado de inveja! 
— De inveja? 
— Sim, confesso-te que guardo dentro esse sentimento ignóbil. Invejo a perseguição de que te dizes vítima e, - palavra! - tenho ciúmes, ciúmes incoerentes, dessa mulher que não é minha, que não conheço, apenas entrevi... Eu dava dez anos de vida - vê tu lá! - pelo prazer de entrar com ela furtivamente em casa de uma cartomante misteriosa e hospitaleira! 
Leopoldo das Neves encarou fixamente o outro, e, depois de uma grande pausa, perguntou-lhe, segurando-o por um botão do casaco: 
— Viriatinho, és meu amigo? 
— Certamente. 
— Queres prestar-me um grande serviço? 
— Qual? 
— Um serviço que não te será desagradável. 
— Que ordenas tu? 
O amante de Clotilde recuou uns passos, apontou para o lado da rua, e declamou o verso de D. Salustio 
De plaire à cette femme et d’être son amant! 
O Viriatinho soltou uma gargalhada tão cristalina e vibrante que chamou a atenção das pessoas que passavam. 
— Não te rias! estou falando sério!... 
— Mas isso é lá possível! Tirar-te do lance, eu!... E ela tão apaixonada por ti!... 
— Conheço-a como as palmas das minhas mãos; dar-te-ei as instruções necessárias... Desde que estejas munido de todos os recursos estratégicos, desde que saibas como atacar a praça, a vitória nãos será difícil. 
— Olha que sou um péssimo general! 
— Deixa-te de modéstias! Vamo-nos embora... Pelo caminho irei te desenvolvendo o plano do ataque. 
— Vamos lá! 
Os dois amigos tomaram a direção da escada. 
— Não calculas como vais ser útil! disse Leopoldo das Neves, descendo. 
— “Útil inda brincando”, acrescentou Viriatinho, descendo também, e apontando para o desgracioso Cupido que desde 1783 dá de beber aos fluminenses.

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