domingo, 7 de agosto de 2022

Crônicas de Segunda na Usina: Machado de Assis: 1º. DE MAIO DE 1863:


Os extremos tocam-se, dizem. Eu, de mim, acho que é uma verdade; e, para não ir além da aplicação que ora me convém, lembro apenas que os pequenos infortúnios têm um ponto de contato com as grandes catástrofes; e a bancarrota de um negociante de grosso trato não o afligirá mais do que me aflige o desfalque de assunto para a crônica desta quinzena. 
Afligia-me, devo eu dizer; porque a boa estrela que preside aos meus dias, sempre me depara, na hora arriscada, com uma tábua de salvação. 
Desta vez a tábua de salvação é uma carta, uma promessa e uma notícia. – Parecem três coisas, mas não são, porque a notícia e a promessa vão incluídas na carta. 
A notícia é de um romance por fazer; e é promessa que me fez em uma carta um amigo a cujos escrúpulos de modéstia não posso deixar de atender; e de quem não posso assoalhar o nome. 
Estou certo que o leitor não levaria a mal que eu desse neste ponto dois dedos de conversa acerca do meu salvador. Nada lhe direi; e a razão é que uma pintura viva e completa daria em resultado imediata contestação do retratado. Sucintamente posso dizer-lhe que só por vergonha é que o meu amigo não se faz anacoreta; mas se jamais veio ao mundo um homem com disposições à vida solitária e contemplativa é aquele; olha os homens por cima do ombro e prefere- lhes muito e muito as rolas e as cegonhas. Das cegonhas fala aplicando sempre a observação de Chateaubriand, “que as vi saindo aos bandos da península grega para África, do mesmo modo por que saíam no tempo de Péricles e de Aspásia. Tal é o contraste da mobilidade das coisas humanas com a imobilidade do resto da natureza”, acrescenta o autor dos Mártires e o meu amigo adere do fundo d'alma a essa opinião. Pelletan tiraria de fato uma conclusão favorável à humanidade; mas o meu estranho amigo pensa diversamente e acredita de convicção que esta com a verdade. 
Não conteste o leitor, porque eu faço o mesmo. 
“Meu amigo, escreve-me ele, à força de não pensar no que me rodeia, atingi a um estado de desapego às coisas da vida que às vezes me acredito o único escapo de um cataclisma universal. Imagina com que sabor volto de quando em quando o pensamento para os sucessos do tempo. É uma nova ocasião de confirmar-me nas minhas anteriores impressões.” 
Dias passados lembrei-me de ser poeta. Vê lá a que ponto cheguei! Tomo a poesia como uma coisa dependente da vontade, como a construção de um prédio ou a fabricação de um pergaminho. 
“Deixa passar a heresia.” 
Lembrei-me de ser poeta; e como não tenho vocação para isso, atribuirás tu esta disposição do espírito ao amor. O amor! Posso eu senti-lo? Reparo às vezes no cuidado com que, em todas as línguas que conheço, esta palavra é construída! Até as mais duras, como a de Pope, encontram o seu melhor som para exprimir este sentimento. Mas existe ele? Existe como deve ser, despido de toda a preocupação terrena, puro como o resumo que é de todos os outros amores? Nos livros dos poetas, de certo; na humanidade, não acredito. 
E como não acredito, lembrei-me de escrever algumas páginas onde me ocupasse do contraste flagrante que há entre o sentimento e as hipóteses do fato. Imaginei um Pílades, três Orestes e uma Safo. Que se pode fazer com estas cinco figuras? Um romancinho, mais ou menos acidentado. O amor de Pílades e Safo; o amor de Safo e dos Orestes; a alternativa constante desta balança que se chama vida, cujas conchas se levantam e se abatem por singulares disposições do acaso e da criatura. Adubo a narração com a pintura do sofrimento de Pílades, e, se me parecer, acabo por fazê-lo lorpa de corpo e de alma, o que não será novo, mas será agradável de ler, porque não faz chorar. Que me dizes ao pensamento? Não dá para cem páginas de oitavo? Penso que sim; já tenho algumas folhas de papel escritas; não sei se acabarei; talvez acabe; e então posso colocar a minha obra sob a proteção da tua amizade, que a fará inserir no Futuro. 
“Talvez achem a história muito velha; responderei que ainda assim é bom repetir essas coisas; e como eu tenho de encarar a história por um ponto de vista pouco explorado, naturalmente lhe hão de achar novo sabor. Teu S.” 
Fico implorando o deus dos poetas para que esta promessa se torne todo o caso, embora não venha a obra prometida, ganho eu com ela que me forneceu matéria para encher as páginas da minha crônica.

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