sábado, 23 de outubro de 2021

Contos do Sábado na Usina: Artur Azevedo:


 


A “DONA BRANCA”
A Delgado de Carvalho Júnior. 
No dia 6 de outubro de 1891, quando o senhor Vieira, ás sete horas da manhã, pôs o chapéu para sair, dona Catarina, sua esposa, disse, consertando-lhe o laço da gravata: 
— Sabes de uma coisa? Mana Adelaide mandou convidar-me para ir hoje com ela ao Teatro Lírico. 
— Que idéia! 
— Aí vens tu! Vai-se embora a companhia e eu não assisto a um único espetáculo, podendo ouvir a 
Dona Branca de graça! 
— Mas, filha, não te lembras que dia é hoje? 
— É terça-feira. 
— E então? 
— E então? 
— Pois não sabe que às terças-feiras não dispenso o meu voltaretezinho em casa do compadre? 
— Quem te diz que não vás ao teu voltaretezinho? Mana Adelaide conhece os teus hábitos e as tuas impertinências; foi a mim e não a ti que convidou. 
— Mas... 
— Olha, eu vou jantar com ela nas Laranjeiras e de lá vamos juntas para o teatro; acabado o espetáculo, ela traz-me no seu carro, e deixa-me ficar em casa. Não gastas um vintém, nem te incomodas. 
— Bem sei, mas não é bonito uma senhora casada ir ao teatro sem seu marido. 
— Mas com sua irmã... e com o marido de sua irmã... 
— Bom, bom, vai; não quero que me chamem desmancha-prazeres. Jantarei sozinho. 
O senhor Vieira saiu, foi tratar da vida, e quando, às quatro horas, voltou à casa, já dona Catarina tinha essa ter com a irmã. 
O pobre homem ficou muito aborrecido naquela solidão. Toda sua família era essa bela senhora com quem se casara em 1885 e contava dez anos menos que ele. 
Tinha quarenta e quatro invernos o senhor Vieira, e inteligência bastante para perceber que dona Catarina o não amava; entretanto, contentava-se da respeitosa amizade com que ela se impunha serenamente à sua estima, e preferia mesmo esse discreto sentimento ao amor desordenado e doentio, que produz ciúmes e dispepsias, maus humores e lesões cardíacas. Depositava uma confiança cega em sua mulher e estimava-a deveras. Sentia-se feliz. 
Mais feliz seria, entretanto, se houvesse uma criança naquela casa. Dona Catarina sofria por vezes longos acessos de melancolia; algumas noites deixava o esposo sozinho n larga cama de casados, e ia revolver-se num sofá, suspirando, irrequieta, nervosa, sem poder dormir. Mas esses fenômenos eram passageiros, e o marido, atribuía-os às ausência da prole. 
— Decididamente, falta uma criança nesta casa! 
Depois daquele jantar de solteirão, o senhor Vieira dormiu a sesta, e às sete horas foi para casa do compadre, em São Cristóvão. O senhor Vieira morava no Catete. 
— Bravos! cá está o nosso homem! exclamou o compadre e exclamaram mais dois amigos da vizinhança, que se achavam à espera do parceiro. Vamos ao vício! 
Os quatro companheiros sentaram-se às oito horas e jogaram até perto da meia noite. O senhor Vieira ganhou dezenove mil e quinhentos. Nunca estivera com tanta sorte. 
À meia noite, depois do chá com torradas, o nosso homem saiu, e foi esperar a condução na esquina. 
Passados uns vinte minutos, apareceu um bonde, mas em sentido contrário, e parou para fazer saltar o Lamenha, que era vizinho paredes meias do compadre. 
— Olá! a estas horas, seu Lamenha? perguntou o senhor Vieira. Já sei que vem do Lírico; foi ouvir a 
Dona Branca. 
— Ora deixe-me com a Dona Branca! Se soubesse... 
— Então a ópera não presta? 
— Não sei; o espetáculo não passou do começo! 
— Ora essa! Por que? 
— NO fim do primeiro ato o público das torrinhas chamou à cena o empresário para ferrar-lhe uma pateada, não sei porque motivo. O empresário não quis vir. O público zangou-se. A polícia interveio, e agora é que são elas! Ah, seu Vieira, que rolo!... 
— Deveras? perguntou o outro empalidecendo. 
— Os soldados da polícia acutilavam a torto e a direito, os bancos voavam, os globos dos candeeiros partiam-se, as famílias separavam-se numa confusão medonha, as senhoras tinham chiliques e soltavam gritos... 
— As senhoras?... Meu Deus!... e a minha!... 
— Há muita gente ferida, e não será para admirar que houvesse mortes! Eu escapei por milagre! 
— E minha mulher que foi a este espetáculo!... 
— Sua senhora? Não a vi. Só vi sua cunhada, a Dona Adelaide, sozinha, correndo e gritando que parecia uma louca! 
— Pois estavam juntas!... Felizmente aí vem o bonde... Quem sabe se não vou encontrá-la morta? Eu bem que queria que não fosse à tal Dona Branca! Ora esta!... 
E o senhor Vieira tomou o bonde, sem mesmo se despedir de Lamenha. 
Imaginem o desassossego com que o pobre diabo fez a viagem de São Cristóvão ao largo de São Francisco. Aí tomou um tílburi. O cocheiro confirmou a informação do Lamenha, acrescentando que tinham morrido duas senhoras, sendo uma de susto. 
Ao passar pela Guarda Velha, o senhor Vieira notou que o Lírico estava imerso nas trevas e no silêncio. 
Chegou à casa, e expectorou um grande suspiro de alívio ao entrar na alcova: dona Catarina dormia tranqüilamente, envolvida no seu lençol. 
O marido despiu-se em silêncio e deitou-se ao lado da senhora. Ela despertou: 
— Ah! és tu? 
Ele, completamente serenado, resolveu gracejar e perguntou-lhe sorrindo: 
— Então, minha senhora, que me diz de Dona Branca? 
— É uma ópera muito bonita. 
— Hein? 
— O último ato principalmente, acrescentou dona Catarina com muita convicção. 
O senhor Vieira sentiu o sangue lhe subir à cabeça, mas conseguiu dissimular, e perguntou se a ópera tinha sido bem cantada. 
— Perfeitamente cantada, respondeu ela, mentindo como só as mulheres sabem mentir. 
— E não houve novidade durante o espetáculo? 
— Nenhuma. O Gabrielesco esteve sublime! 
— O Gabrielesco? No último ato? 
— Em todos os atos. É um tenorão! 
— Está bem. 
O senhor Vieira apagou a vela e fingiu que se aninhava para dormir. 
— Aí está você amuado! Eu por seu gosto não saía de casa, não me divertia, vivia metida entre quatro paredes! Que homem!... 
Ele resmungou uns sons inarticulados; não respondeu. 
— Será possível que o Lamenha me enganasse? pensava o marido. Não; - e o cocheiro do tílburi?... 
O senhor Vieira passou, talvez pela primeira em sua vida, uma noite completamente em claro. Ergueu- se logo ao amanhecer, saiu, convenceu-se de uma verdade terrível, e nesse mesmo dia separou-se para sempre de dona Catarina. 
Na terça feira seguinte, o senhor Vieira não faltou ao voltaretezinho do compadre. 
Quando este lhe perguntou: — Então?... que foi isso?... a comadre? - ele respondeu melancolicamente: 
— A comadre ouvia-me dizer que em nossa casa faltava uma criança e quis arranjá-la fora... Deixa lá! - Vamos ao vício! 
Nessa noite perdeu quinze mil e oitocentos.

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