sábado, 23 de outubro de 2021

Contos do Sábado na usina: Humberto de Campos:

 




O seringueiro V 
O sertão estava, então, todo seco, sem a sombra de arvoredo ou vestígio dágua, entre o sopé da Ibiapaba e a linha da Estrada de Ferro. Na quietude da tarde, João Lucrécio sentia isso. Ao fundo, no horizonte, a serra azulava, como se corresse para ele, tão perto lhe parecia, na atmosfera sem vapores. De um lado e de outro do caminho, os mofumbos e marmeleiros agrestes estavam reduzidos a talos comburidos, como um tabocal após a passagem do fogo. A noite caía lenta, envolvendo tudo, como um sudário imenso, lançado sobre a terra pela piedade divina. O céu, estrelado e baixo, parecia a cúpula enorme da tenda suntuosa de um poderoso rei oriental. As estrelas luziam tanto, e pareciam tão próximas, que iluminavam a estrada. Uma coruja começou a gargalhar à pequena distância, no galho em cruz de uma árvore morta. João Lucrécio persignou-se, arrepiado. Lembrou-se que nunca fizera isso no Amazonas, porque, por lá, mesmo nas horas de medo, nunca se lembrara de Deus. O cavalo e os burros resfolegavam, sopravam forte, quebrando a serenidade da noite. Grilos ziniam, insistentes. E ele, vivo, marchava, a passo, como um fantasma, pela tristeza dos caminhos mortos. 
Em certo momento divisou, porém, à margem da estrada, uma casa humilde, sem luz. Resolveu fazer alto ali, para continuar a viagem pela manhã. Aproximou-se tocando o cavalo na frente, puxando os muares pelo cabresto. 
- Ó, de casa! - chamou. 
A porta de madeira tosca abriu-se timidamente, e uma figura humana desenhou-se na meia escuridão. 
- Boa noite! - saudou o paraoara. 
- Deus lhe dê boa noite - respondeu uma voz de homem. 
- Seria possível, amigo, eu passar a noite aqui, para seguir de madrugada? 
- Se quiser, pode; mas, como o senhor sabe, por aqui não tem água nem p'ra bicho, nem p'ra gente. 
- Isso é o menos - atalhou João Lucrécio, apeando-se. - Eu trago ração de milho e uma borracha com água. O que eu quero é só licença para ficar. 
Meia hora depois, na salinha da casa pobre, ceava o paraoara o rancho comprado em Sobral: um pedaço de carne, farinha, um quilo de bolacha, uma lata de sardinha e uma garrafa de vinho. Ao lado dele, junto ao tamborete improvisado em mesa, o dono da casa um caboclo de 
musculatura forte, escaveirado, acompanhava-o na refeição, a que se associava a mulher, esquelética, em cujos olhos afundados nas órbitas luziam a dor e a fome. Em poucos instantes o pequeno farnel foi todo devorado. E como se sentissem, todos, por um momento, felizes, o seringueiro pôs-se a falar, com a indiscrição alegre da meia embriagues. 
- O senhor não é mesmo daqui.. - aventurou o dono da casa, atordoado também pelo vinho que aceitara dó hóspede, e que começava a atuar sobre a sua debilidade. 
- Não, senhor - informou o paraoara - Eu sou do Rio Grande do Norte. Vim por aqui para passear... Fui p'ra Amazonas e fui feliz. Ganhei um dinheirinho, e agora vim ver isto por aqui... 
Quero ver se compro alguma fazenda barata, lá para o pé da serra... 
E, jovial, por efeito do álcool, e, não menos, por vaidade, para escandalizar a miséria alheia: 
- Dinheiro é que não falta! 
E arrancou do bolso um forte maço de cédulas, capeado por duas de quinhentos mil réis, que passou às mãos trêmulas do sertanejo e da mulher, que as examinaram, piscando. 
Em seguida, os donos da casa armaram, mesmo na sala humilde, a rede do hóspede. Desejaram- lhe boa noite, e recolheram-se, pensativos, para o fundo da cabana. Voava-lhes no cérebro o bando agoureiro pensamentos sinistros, que nenhum dos tinha coragem de confessar ao outro.

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