quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Poesia de Quinta na Usina: Fagundes Varela: Soneto: NAPOLEÃO:



Sobre uma ilha isolada,

Por negros mares banhada,

Vive uma sombra exilada,

De prantos lavando o chão;

E esta sombra dolorida,

No frio manto envolvida,

Repete com voz sumida:

- Eu inda sou Napoleão.

 

Tremem convulsas as plagas

 

Bravias lutam as vagas,

Solta o vento horríveis pragas

Nos cendais da escuridão;

Mas nas torvas penedias


2

 

Entre fundas agonias,

 

Ela diz às ventanias:

-   Eu inda sou Napoleão.

 

-   E serei! do céu da glória, Nem dos bronzes da memória, Nem das páginas da história Meus feitos se apagarão; Passe a noite e as tempestades, Venham remotas idades, Caiam povos e cidades,

 

-   Sempre serei Napoleão.

 

Da coluna de Vendôme,

 

O bronze, o tempo consome,

Porém não apaga o nome

Que tem por bronze a amplidão.

Apesar de infausto dia,

Da infâmia que tripudia,

Dos bretões a cobardia,

- Sempre serei Napoleão.

 

Nos vastos plainos do Egito,

 

Sobre Titães de granito,

Eu tenho um poema escrito

Que deslumbra a solidão.

Das Ísis rasguei os véus,

Entre os altares fui deus,

Fiz povos escravos meus,

- Ah! inda sou Napoleão.

 

Desde onde o crescente brilha

 

Até onde o Sena trilha,

Tive o mundo por partilha

Tive imensa adoração;

E de um trono de fulgores

Fiz dos grandes - servidores,

Fiz dos pequenos - senhores,

- E sempre fui Napoleão.

 

Quando eu cortava os desertos,

 

Vinham-me os ventos incertos

De incenso e mirra cobertos

Lamber-me as plantas no chão;

As caravanas paravam,

E os romeiros que passavam

Às solidões perguntavam:

- É este o deus Napoleão?

 

E lá nas plagas fagueiras,

 

Onde as brisas forasteiras,


3

 

Entre selvas de palmeiras

 

Corre o sagrado Jordão,

O lago dizia ao prado,

O prado ao monte elevado,

O monte ao céu estrelado:

- Vistes passar Napoleão!

 

Dizei, auras do Ocidente,

 

Dizei, tufão inda quente

Do bafejo incandescente

Do não vencido esquadrão,

Como é ele? é belo, ousado?

Tem o rosto iluminado?

Tem o braço denodado?

- Sempre é grande Napoleão?

 

E as águias no céu corriam,

 

E os areais se volviam,

E horrendas feras bramiam

No imenso da solidão;

Mas as vozes do deserto

Se erguiam como um concerto

E vinham saudar-me perto:

-   Tu és, senhor, Napoleão!

 

-   Se sou! que Marengo o conte, De Austerlitz o horizonte,

E aquela soberba ponte Que transpus como o tufão! E a minha vida de Ajácio, E o meu sublime palácio, E os pescadores do Lácio Que só dizem - Napoleão!

 

Se o sou! que digam as plagas,

 

Onde do sangue nas vagas,

Coberta de enormes chagas

Dorme vil população;

Digam da Ásia as bandeiras,

Digam longas cordilheiras,

Que se abatiam, rasteiras,

Ao corcel de Napoleão!

 

Se o sou! diga Santa Helena

 

Onde a mais sublime cena

Fechou tranqüila e serena

Minha história de Titão,

Digam as ondas bravias,

Digam torvas penedias,

Onde as rijas ventanias

Vêm murmurar: - Napoleão.


4

 

 

E serei! do céu, da glória,

 

Nem dos bronzes da memória

Nem das páginas da história

Meus feitos se apagarão!

Assim na rocha isolada

Pelas espumas banhada,

Disse a sombra desterrada,

De prantos lavando o chão.

 

As névoas rolam nos céus,

 

Da noite escura nos véus

Soltam negros escarcéus

Rugidos de imprecação;

Mas das sombras a espessura

A face da onda escura,

O salgueiro que murmura

Tudo fala - Napoleão!

Nenhum comentário:

Postar um comentário